uma discussão historiográfica
Com este artigo, pretendemos refletir sobre a maneira pela qual as transformações observadas no conhecimento histórico a partir do século XVIII proporcionaram múltiplas interpretações sobre a “queda” do Império Romano. Nesse sentido, analisamos como a mudança na concepção de tempo, a crítica às noções de progresso e decadência e a superação do paradigma positivista permitiram que a transição da Antigüidade para a Idade Média adquirisse um novo significado dentro da historiografia.
Palavras-chave: Mundo Antigo - Desagregação - Historiografia
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Introdução
O fim do Mundo Antigo sempre representou, ao longo da História, um apaixonante tema para todos aqueles que se sentiam atraídos pela “grandeza” e “decadência” de Roma, o que não nos deve suscitar uma excessiva admiração - a expressão “fim do Mundo Antigo” não possui, no espaço desse trabalho, nenhum conteúdo pejorativo, daí que a utilizaremos com freqüência, nas páginas subseqüentes, para definir o ápice de todo um amplo conjunto de transformações que vinham se processando no interior da sociedade romana desde o século III. Estas transformações redefiniram de tal forma o perfil da Civilização Clássica que se torna impossível negar que a Idade Média significou o advento de uma outra civilização, não obstante inúmeros elementos da cultura romana poderem ser detectados sem muito esforço ao longo de todo o período medieval.
De fato, após nada mais nada menos do que dez séculos de História, uma das mais importantes civilizações da Antigüidade encontrava sérios obstáculos à sua manutenção como uma estrutura integrada, sendo atingida por uma série de reveses políticos, econômicos e culturais internos, além de sofrer com problemas de ordem externa, como foi o caso das famosas invasões bárbaras, tidas por muitos como o principal fator responsável pela “queda” do Império Romano do Ocidente (embora os manuais de História Antiga costumem incluir os três séculos anteriores à instauração da República [509 a.C. aprox.] no período de vigência da Civilização Romana, para efeitos deste trabalho julgamos por bem considerar que a Civilização Romana propriamente dita somente se constitui a partir da segunda metade do século VI, momento no qual emergem formas de organização social que poderíamos identificar como sendo tipicamente romanas e não mais etruscas ou mesmo latinas). Por sua vez, a tendência a se atribuir aos “bárbaros” uma maior responsabilidade nos acontecimentos que irão culminar com a desagregação do Império Romano remonta até Comodiano e Ambrósio (séculos III e IV respectivamente). Dentre os historiadores contemporâneos que se afinam com essa concepção, merece referência André Piganiol, que certa vez afirmou: "a Civilização Romana não pereceu de morte natural. Foi assassinada" (1972: 466). Contudo, a maior parte dos autores se inclina por uma análise dos fatores internos da desagregação. Para um maior esclarecimento sobre o assunto, consultar Fernández Ubiña (1982).
Diante de um acontecimento tão insólito como este, os espíritos não poderiam permanecer serenos e passivos. Pelo contrário, tornava-se imprescindível descobrir os motivos pelos quais isto se deu, apontar os indícios de “enfraquecimento” do Império, estabelecer explicações. Aos contemporâneos interessava, particularmente, entender o complexo emaranhado de mudanças que vivenciavam no cotidiano e que na maior parte das vezes os deixavam perplexos, tal a rapidez com a qual se processavam (por exemplo, Agostinho [Sermonis 2 e 7] e Jerônimo [Epistulae 123, 126 e 128]), enquanto que para os seus sucessores o problema se encontrava circunscrito ao domínio da História propriamente dita, com todas as funções capitais que esta assumiu no panorama da cultura ocidental desde a Idade Média: transmissão da Palavra e do Exemplo, veículo da tradição, crítica do presente, decifração do destino da Humanidade, antecipação do futuro, promessa de um retorno (Foucault, s/d.: 477) e, mais recentemente, compreensão das estruturas atuais e planejamento das futuras (Cardoso, 1988: 120).
Sendo assim, desde o século III até os nossos dias, passando por autores como Flávio Biondo (Historiarum ab inclinatione romanorum decada tres, 1453), Montesquieu (Considérations sur les causes de la grandeur des romains et leur décadence, 1734) e Gibbon (History of the decline and fall of the Roman Empire, 1776-88), se produziram múltiplas interpretações sobre o fim do Mundo Antigo em consonância com os próprios pressupostos inerentes ao conhecimento histórico, razão pela qual pretendemos analisar, no decorrer desse trabalho, o modo pelo qual o tema da desagregação do Império Romano do Ocidente acompanhou as transformações historiográficas observadas a partir do século XIX.
Para tanto, partimos de duas premissas fundamentais. Em primeiro lugar, que todas as formações discursivas que emergem em uma dada época provêm de um solo que as possibilita e circunscreve tanto a sua estruturação interna quanto os seus limites. Em segundo lugar que, como definiu magistralmente Georges Lefèbvre (1981: 2), somente podemos propor novas explicações para os fenômenos históricos se conhecermos a historiografia, pois muito embora a escrita da História dependa da exploração de novas fontes ou da leitura de fontes já conhecidas sob uma ótica renovada, ela não depende menos do diálogo com todo um repertório de interpretações pré-existentes.
A História tradicional
O século XIX representou, sem sombra de dúvida, um momento de considerável avanço para a estruturação da História enquanto domínio de saber positivo, com a elaboração de técnicas específicas concernentes ao tratamento das fontes históricas (métodos de erudição crítica), publicação de gigantescas coletâneas de documentos, a exemplo do Corpus Inscriptionun Latinarum, de Mommsen, cujo primeiro tomo apareceu em 1863, e da Patrologia Latina e Grega, de Jean-Paul Migne, um pouco posterior, e o surgimento de grandes escolas históricas nacionais européias sob a égide de historiadores como Ranke, Guizot, Thierry, Michelet e outros, os quais gozavam de grande prestígio junto aos meios universitários da época (Cardoso, 1988: 33-4).
Contudo, não obstante todas essas inovações de caráter técnico-científico, o trabalho dos historiadores do século XIX se encontrava ainda limitado por algumas concepções produzidas em épocas anteriores que resistiriam por muito tempo antes de serem definitivamente superadas. Uma delas, talvez a mais evidente, sustentava que a dimensão por excelência do conhecimento histórico era a ação política (Lefèbvre, 1981: 16), só que não mais esta ação tomada na sua manifestação particular tal como a concebia a Filosofia Política do século XVIII, mas inserida agora numa visão processual que lhe conferia um sentido abrangente e a vinculava à História da Humanidade (Arendt, 1988: 93), advindo daí todo o interesse dos historiadores até meados do século XIX pelas vicissitudes dos Estados e Impérios e suas infindáveis querelas diplomáticas e conflagrações militares. A História Política, de fato, parecia não trazer muitas preocupações à maioria dos historiadores, envolvidos com seus estudos monográficos e exaustivos, adequando-se tanto ao espírito cientificista do positivismo, com o seu interesse pelo estabelecimento de fatos empíricos mediante um estudo acurado da documentação, quanto ao historicismo, dedicado a uma investigação cada vez mais minuciosa do pormenor e à explicação de acontecimentos individuais e irrepetíveis mediante um encadeamento hipotético de causas e efeitos (Barraclough, 1987: 33).
Na sua obsessão pelos acontecimentos políticos, únicos passíveis de uma datação “precisa” e meticulosa que muitas vezes preferia a década ao século, o ano à década, o mês ao ano e assim por diante, os historiadores do século XIX elaboraram periodizações para a História que, devido ao seu excessivo esquematismo, acabaram dando margem a interpretações reducionistas e por demais desconectadas da realidade social, sempre complexa e infinita (Bloch, s.d.: 157-8). No que diz respeito à História Antiga, na tentativa de delimitar com “exatidão” e “rigor científico” o momento em que se deu a passagem da Antigüidade para a Idade Média, os historiadores não hesitaram em eleger o desaparecimento da unidade política imperial nas províncias do Ocidente (o qual, de acordo com a tradição, teria se dado com a deposição do último imperador, Rômulo Augusto, por Odoacro, rei dos hérulos, em 476) como o marco final do Mundo Antigo. A partir de então, inaugurava-se uma nova era na História da Civilização Ocidental cuja única relação que mantinha com a anterior devia-se ao fato de tê-la sucedido no tempo, posto que a “queda” do Império era considerada o acontecimento máximo a condicionar a mutação abrupta em todos os níveis da sociedade.
Uma periodização como essa, elaborada a partir dos acontecimentos políticos que, como sabemos, se caracterizam por uma acentuada mobilidade, produzindo rupturas institucionais freqüentes (Le Goff, 1984: 416), era o instrumento mediante o qual se tornava possível classificar o Baixo Império romano como um período de decadência, declínio, queda, pois atrelava a existência de toda uma cultura à manutenção do Império, unidade essencialmente política. Ao mesmo tempo, a visão expressa pelos conceitos acima mencionados era bastante pessimista. Isso porque, na medida em que a Civilização Clássica havia entrado em “decadência” o período seguinte, isto é, a Idade Média, surgia como a antítese do anterior, a “Idade das Trevas” tão decantada pelos renascentistas, momento de afirmação da barbárie, da descentralização, do obscurantismo, um capítulo à parte na história da “brilhante” Civilização Ocidental.
O Renascimento, é bem verdade, buscara resgatar os valores clássicos negando ostensivamente a experiência medieval, dentro de uma concepção de tempo cíclica segundo a qual a Humanidade passaria por fases regulares de progresso, apogeu e decadência, ao término das quais se retornaria novamente ao ponto de partida por meio da reatualização de um passado otimizado. Os séculos XVII e XVIII refinaram um pouco mais essa concepção com o aparecimento de pensadores que, adotando o tempo linear, não acreditavam na possibilidade de retorno a uma suposta Idade de Ouro (já que o passado jamais poderia voltar a ser o presente e tampouco o futuro), mas sim num desenvolvimento seguido de declínio, dando lugar a uma nova fase de desenvolvimento diferenciada da primeira, de modo que no decorrer desses movimentos oscilantes se obteria uma ascese gradual.
Esse tipo de interpretação parecia eximir a Idade Média de qualquer conteúdo pejorativo, mas na realidade não foi isso o que ocorreu - para uma síntese sobre as diversas vertentes da idéia de progresso desde a Antigüidade até os nossos dias, consultar o artigo de Le Goff (progresso/reação) em Romano (1984: 338-69). No século XVIII, por exemplo, Voltaire defendia um progresso da razão humana mediante a sua revelação empírico-objetiva, mas apontava entraves poderosos a esse progresso: a religião e as guerras (Arrilaga Torres, 1982: 35-6). A referência à Idade Média, período marcado por uma visão de mundo eminentemente religiosa, é aqui evidente. Gibbon (1989: 442-3), no seu monumental trabalho sobre a desagregação do Império Romano, manifestava uma clara influência iluminista ao afirmar que o Império havia sido “engolfado por um dilúvio de bárbaros” e que as seitas cristãs perseguidas haviam se tornado “inimigas do seu país”.
Desse modo a Idade Média, em maior ou menor grau, era vista sempre pelos autores não vinculados à Igreja como um momento de recuo, de retrocesso, o que vinha a reforçar ainda mais o tema da “decadência” de Roma. E nem mesmo toda a reação romântica a favor de um progresso ininterrupto, o que forçosamente negava a existência de uma regressão durante a Idade Média, foi capaz de reabilitá-la aos olhos da maioria dos historiadores. Pelo contrário, a tradição iluminista mostrou-se muito mais vigorosa num mundo que redefinia as fronteiras entre o sagrado e o secular e experimentava um progresso técnico e científico que parecia não ter fim.
De fato, do Renascimento ao século XIX as invenções e descobertas da inteligência humana haviam produzido um mundo que apostava cada vez mais na capacidade do homem em dominar a natureza, reelaborar o seu meio e criar as condições para o bem-estar universal. O progresso era tido, então, como uma meta a ser alcançada no futuro, recusando-se qualquer ideal nostálgico de retorno ao passado. A segunda metade do século XIX assistiu ao triunfo definitivo da ideologia do progresso, em meio ao grande boom econômico e industrial do Ocidente (Le Goff, 1984: 355). Nada parecia capaz de abalar esse progresso, uma vez que nem mesmo os inumeráveis conflitos entre os impérios europeus ao longo de toda a Idade Moderna e princípios da Contemporânea tiveram condições de detê-lo. Diante dessa constatação, o fim do Mundo Antigo se revestiu de uma excepcional importância para os historiadores do século XIX na medida em que representava uma “decadência” e um “recuo” do Ocidente em termos globais, ao passo que todas as demais “decadências” sofridas pelos impérios europeus foram apenas acontecimentos isolados no seio de um progresso ininterrupto, contínuo, irresistível.
Com isso, a “queda” de nenhuma outra civilização suscitou tanta admiração e foi tão exaustivamente estudada como a da Civilização Clássica, instaurando-se um intenso debate entre os historiadores sobre os motivos que provocaram uma ruptura em tal profundidade.
O conceito de decadência, não obstante incluísse critérios morais e culturais, se pautava fundamentalmente por critérios de ordem política (Le Goff, 1984: 416), fazendo derivar das oscilações do sistema político, como já dissemos, a transformação de toda a sociedade. O que se encontra subjacente à utilização desse conceito e, conseqüentemente, à opinião geral que ele visa a expressar, é uma determinada concepção de temporalidade que, embora rompida na passagem do século XVIII para o XIX com a dissolução da episteme clássica, continuou por muito tempo ainda presente no trabalho dos historiadores.
Para os homens da Idade Média e Moderna a história, fosse ela cósmica ou providencialista, era concebida como algo contínuo e uniforme, um processo global de ascensão ou de queda que reunia todos os seres e todas as coisas num movimento único, sem que nada pudesse permanecer inerte (Foucault, s.d.: 477). Devido a isso, domínios de saber como a Biologia, a Filologia, a Economia Política e outros não podiam se constituir, já que para tanto dependiam do isolamento do seu objeto de estudo num certo número de regras que lhes fossem próprias e que possuíssem uma temporalidade particular, desvinculada da história do homem ou do universo. As condições para que isso ocorresse somente se deram no século XIX, com a descoberta de uma historicidade própria ao trabalho, à vida e à linguagem.
Mas a História produzida nas universidades e academias, pelo fato de se voltar quase que exclusivamente para os acontecimentos de natureza política, não fora capaz de absorver de imediato as inovações que estavam sendo geradas em outros ramos do conhecimento e que, dentro em breve, redefiniriam todo o panorama da História tradicional ao instaurar como objetos passíveis de uma análise histórica per se, isto é, sem vinculação estreita com o tempo da política, setores da vida social até então submetidos a essa vinculação ou, em muitos casos, ignorados.
Por outro lado, além desse problema central referente à temporalidade, havia outros que impunham igualmente sérios limites à explicação histórica, como por exemplo a tendência a se considerar a história como o domínio do acontecimento irrepetível, individual e particular, a ausência de hipóteses explícitas que orientassem as pesquisas, a elaboração de explicações superficiais e restritas, sem validade em nível estrutural, a excessiva fixação em fontes escritas e o isolamento da História frente aos notáveis avanços das demais Ciências Humanas, em especial a Sociologia, a Economia e a Demografia (Cardoso, 1988: 36-7).
No limiar da ruptura
Todos esses problemas configuravam uma História tradicional que, desde finais do século XVIII, vinha recebendo críticas de pensadores como Voltaire, Guizot e Michelet, defensores de uma História que se voltasse para o estudo da sociedade como um todo e não apenas para os seus aspectos políticos e que fosse, ao mesmo tempo, explicativa. Do mesmo modo os cientistas sociais, dentre os quais podemos incluir Max Weber, recuperaram estas mesmas críticas contra uma História eminentemente descritiva (Lefèbvre, 1981: 333). Não que todos os historiadores dessa época se preocupassem apenas em narrar os fatos. Pelo contrário, apesar de o positivismo, tal como define Comte, negar à História a capacidade de estabelecer leis gerais acerca dos fenômenos que estuda em função do caráter particular e irrepetível destes, além de rejeitar a noção de causalidade primeira ou final por julgá-la radicalmente inacessível e profundamente inútil (Simon, 1986: 63), alguns historiadores se preocupavam em identificar o nexo causal entre os acontecimentos, mesmo que em nível somente do singular, o que não deixava de ser uma tentativa de se explicar a História, demonstrando-se com isso que os fatos descritos não eram de modo algum contingentes (sobre as noções de causa, determinismo e acaso, ver Arrilaga Torres, 1982: 78-115).
A grande dificuldade era, entretanto, a insuficiência da explicação, vinculada ao particular e limitada ao campo da política. Por outro lado, os historiadores do século XIX não deixavam de atentar, como habitualmente se pensa, para os demais aspectos da sociedade, embora eliminassem qualquer possibilidade de uma análise mais produtiva ao conceberem uma relação de necessidade entre a ascensão ou queda dos impérios e a “decadência” dos demais setores da vida social, ou ao realizarem uma abordagem estanque da realidade na qual cada uma das manifestações da vida humana era tratada separadamente, sem maiores articulações de conjunto, como ocorre com a “História-Quadro” criticada por Lucien Febvre (1977: 111-2).
Dentre todas as severas críticas dirigidas à História tradicional por inúmeros pensadores ainda na segunda metade do século XIX, a mais contundente brotará do trabalho de Marx e Engels, os primeiros a elaborar uma teoria global coerente das sociedades humanas, vistas tanto nas suas leis estruturais quanto nas suas leis dinâmicas ou de transformação (Cardoso, 1988: 34). Agindo assim, o marxismo estimulava uma nova orientação da investigação histórica, afastando-se da análise descritiva de acontecimentos isolados, na maior parte das vezes de ordem política, para se consagrar à investigação de processos econômicos e sociais complexos e de grande extensão.
Além disso, o marxismo preconizava uma abordagem de caráter sociológico, sustentando que os historiadores deveriam dedicar-se ao estudo de formas de organização social recorrentes ao longo da história (Barraclough, 1987: 40-1). Iniciava-se, assim, o lento processo de redefinição dos parâmetros do conhecimento histórico, por meio da superação de procedimentos que muito pouco tinham já a oferecer em termos de um entendimento global da vida do homem em sociedade, o qual só viria a se completar quase um século mais tarde.
No entanto, em que pese toda a importância do materialismo histórico para a expansão dos horizontes do historiador, aquele mantinha ainda um vínculo com a História tradicional que limitou todo o seu desenvolvimento posterior quando a partir de 1917, com a vitória dos bolcheviques, a concepção marxista da História começou a se difundir nos meios acadêmicos europeus: a noção de temporalidade única, resultado direto do determinismo econômico subjacente à interpretação de Marx acerca do devir histórico. Em 1859 escrevia ele:
"Em certa fase do seu desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes (...) De formas evolutivas das forças produtivas que eram convertem-se em seus entraves. Abre-se, então, uma era de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura" (Marx, 1946: 30-1).
Como podemos perceber, Marx aqui ainda pressupõe uma identidade temporal entre os diversos setores da vida social na medida em que concebe para estes uma historicidade única, só que não mais uma historicidade fundada na ascensão ou derrocada dos impérios, mas sim nos movimentos de dissolução e emergência dos modos de produção. Essa perspectiva de abordagem será, mais tarde, acentuada em extremo mediante a utilização do conceito de revolução social pelos historiadores soviéticos quando estes, seguindo as diretrizes do marxismo “oficial” durante o governo de Stálin, se dedicarem ao estudo do processo de transição da Antigüidade para a Idade Média.
Nesse período, verificaremos que a grande maioria dos pesquisadores (senão a sua totalidade), ao trabalharem com a História, selecionaram apenas os dados empíricos que vinham comprovar as teses de Marx, Engels e seus epígonos sobre o devir histórico, não hesitando em deturpar a realidade para alcançar os seus objetivos, os quais se confundiam com os objetivos do Partido Comunista Soviético, isto é, produzir um determinado conhecimento, dito “verdadeiro” porque elaborado segundo os cânones da investigação “científica”, que corroborasse a visão de mundo marxista sobre o passado e, por extensão, validasse os pressupostos do materialismo histórico quanto ao progresso inevitável da humanidade rumo à superação das relações de produção burguesas, tidas por Marx como a última formação social da pré-história humana (Marx, 1946: 32). O predomínio da interpretação oficial da História sustentada pelos historiadores marxistas mais ortodoxos somente será rompido a partir da segunda metade da década de 1950, após a morte de Stálin e a conseqüente abertura política vivenciada pela sociedade soviética.
Para uma nova história
A História tradicional, a despeito de sua ampla aceitação nos meios acadêmicos por historiadores tanto de orientação positivista quanto historicista, não reinava absoluta e isenta de críticas. Muitos já haviam apontado, ao longo do século XIX, as limitações desse tipo de História, principalmente os seguidores do materialismo histórico que, após a Grande Depressão de 1929-1930 e a crise cada vez mais acentuada do sistema capitalista, viram os trabalhos de Marx e Engels serem resgatados do limbo para onde haviam sido lançados pelos pesquisadores europeus outrora maravilhados com os inacreditáveis avanços da sociedade burguesa (Barraclough, 1987: 47).
Mas o marxismo não se encontrava sozinho nessa luta. Ao seu lado se constituía um outro movimento de renovação do conhecimento histórico que estaria destinado a cumprir um papel capital na estruturação da moderna historiografia: a Escola dos Annales. Juntas, ambas as correntes irão desconstruir todo o edifício da História tradicional num esforço lento e contínuo que somente receberá um impulso decisivo após a Segunda Guerra Mundial, quando os historiadores perceberem que o seu ofício, tal como era exercido antes de 1939, não lhes dava mais condições para entender todas as transformações pelas quais passará o mundo durante o conflito.
A Escola dos Annales surgiu em 1929, em torno de uma publicação regular intitulada, a princípio, Annales d’Histoire Économique et Sociale, sob a organização de Lucien Febvre e Marc Bloch, dois dos mais eminente historiadores franceses da época, e congregava diversos pesquisadores que se propunham a escrever uma História renovada em todos os seus aspectos, desde a escolha do objeto e da documentação até os pressupostos teórico-metodológicos da análise. Em suas propostas fundamentais, resultado das severas críticas que dirigiam à História tradicional, os teóricos dos Annales se aproximavam bastante do marxismo, mais não fosse pelo fato de que, embora na maior parte dos países o ensino universitário estivesse vedado aos marxistas e socialistas antes de 1945, somente a França se mostrava mais receptiva para com o materialismo histórico, a exemplo de historiadores como Jaurès, Labrousse e Lefèbvre, adeptos da História Econômica que começava então a se enriquecer com o auxílio da Demografia e da Estatística.
Entretanto, não obstante todas as semelhanças que possamos detectar entre a Escola dos Annales e o marxismo, ambos guardam entre si uma diferença essencial quanto aos postulados da ciência histórica que irá condicionar todos os trabalhos historiográficos produzidos a partir de 1929, além de gerar uma polêmica bastante acirrada entre os seguidores das duas correntes que só mais recentemente logrou um certo abrandamento. Isso porque os Annales, diferentemente do marxismo, incorporam de modo definitivo ao conhecimento histórico e tomam como a sua profissão de fé a noção das temporalidades múltiplas. De fato, tanto Febvre quanto Bloch (s.d.: 158) e os demais, na sua cruzada contra uma História Política excessivamente mecanicista e capaz de gerar sérias deformações devido ao rigor com que os fatos políticos eram tomados como parâmetros de datação, aceitam plenamente a existência não de um tempo único a reger o devir dos seres e das coisas, mas sim de tempos múltiplos que conferem a tudo uma historicidade particular e que se manifestam em concordância com a heterogeneidade dos próprios seres e das coisas.
No momento em que essa descoberta é assimilada pelos historiadores, cujo objeto primordial, além do homem, é o tempo, a duração, conforme afirmava Marc Bloch (s.d.: 29), o todo compacto, cristalizado, uniforme que era a sociedade, se desfaz e nesse movimento liberta os homens, suas ações, obras e instituições da historicidade que os mantinha unidos no interior de um discurso que não mais se sustenta. Percebe-se claramente, a partir daí, que a sociedade é um todo, isso não se pode negar, mas um todo heterogêneo e ao mesmo tempo harmonioso, constituído por múltiplos níveis ou sistemas de acordo com a natureza dos fenômenos sociais, sejam eles econômicos, políticos, ideológicos e outros.
Assim, a língua, as relações de produção e parentesco, as instituições políticas, os códigos de lei, os ritos e doutrinas, a indumentária, as artes maiores e menores, as ideologias, enfim, tudo o quanto existe, criado pela ação do homem em sociedade, é regido por tempos diferenciados não se modificando, necessariamente, num só instante, embora não se neguem as inter-relações que existem entre os sistemas. A dispersão temporal não é mais o limite do trabalho do historiador, o qual lutava desesperadamente para reconstituir a unidade existente entre os acontecimentos, eliminando tudo aquilo que não fosse possível inserir numa narrativa contínua e uniforme. Ela se torna agora a sua condição de possibilidade (Foucault, 1976: 57-8).
Com o recurso às temporalidades múltiplas, abriu-se uma perspectiva inédita para o domínio da História. Agora era possível identificar-se quais os elementos de uma dada formação social haviam resistido ao tempo e permanecido habitando o interior da formação social subseqüente, sem existir mais a preocupação de se delimitar cada cultura no âmbito de um espaço que lhe era inerente e absolutamente específico. Surgem as teorias de Fernand Braudel (1978) sobre a curta, a média e a longa duração, e a História forja para si ou toma das demais Ciências Humanas novas abordagens, objetos, métodos e técnicas. E a História Antiga, como não poderia deixar de ser, é atingida também por esse movimento, voltando à cena as questões em torno da “decadência” do Império Romano do Ocidente.
Nesse sentido, não se aceitava mais a opinião de que a Civilização Clássica havia simplesmente acabado no momento em que Rômulo Augusto foi deposto ou quando se processou a substituição do escravo pelo colono como mão-de-obra dominante (a exemplo do que sustentavam os marxistas mais ortodoxos). Tudo passará a depender, doravante, da perspectiva de abordagem escolhida pelo pesquisador para empreender a sua análise. Um exemplo disso são os historiadores que até hoje se esforçam para provar que a Civilização Romana se desfez no momento em que as invasões “bárbaras” tornaram-se mais numerosas e ofensivas e os chefes germânicos assumiram o poder nas localidades provinciais, juntamente com os bispos e os antigos proprietários romanos ou romanizados. Esse ponto de vista, não obstante possua uma certa coerência, não esgota a problemática, uma vez que resta sempre a pergunta: mas, toda a Civilização Romana se reduzia apenas ao funcionamento satisfatório das instituições político-jurídicas e administrativas? Decerto que não, e isso fornece aos outros sistemas sociais uma importância equivalente à do sistema político ou mesmo do econômico.
Com efeito, se pensarmos em termos de costumes, arte ou ideologia, como comprovar um fim, um esgotamento, uma ruptura? De acordo com as propostas da Escola dos Annales, o que ocorre no período de transição da Antigüidade para a Idade Média é uma renovação, o surgimento de uma nova cultura a partir da fusão de valores clássicos com valores cristãos. Por conta disso, elabora-se um novo conceito com a finalidade de exprimir toda a originalidade e vigor das transformações sociais que atingiram o Império Romano do III ao V século, principalmente após a Anarquia Militar: o de Antigüidade Tardia, oriundo do alemão Spatantike (Martin, 1976: 261), e que teve em Peter Brown (1972) e Henri-Irénèe Marrou (1980) dois notáveis defensores.
De acordo com essa perspectiva, o fim do Mundo Antigo não pode e nem deve ser visto como um período de decadência, queda ou declínio, mas sim de surgimento de novas concepções religiosas e estéticas, de novas invenções e técnicas artísticas que exerceram uma inegável influência sobre as civilizações posteriores. Todas essas transformações se encontram encerradas no conceito de Antigüidade Tardia, o qual possui a atribuição precípua de valorizar a especificidade de um mundo marcado pela fusão da cultura pagã clássica com os valores cristãos e bárbaros que há de aprender-se a reconhecer em sua originalidade e a julgar-se por si mesmo e não através dos cânones de outras idades (Marrou: 1980: 15).
Muito embora a descoberta da historicidade própria que reside no interior dos seres e das coisas tenha se dado, como afirmamos, já na passagem do século XVIII para o XIX, tal acontecimento não foi capaz de reordenar, de um único assalto, todos os discursos produzidos desde então sobre a desagregação do Império Romano, de maneira que ainda hoje o tema da “queda” de Roma permanece como um tema recorrente, por exemplo, nos manuais escolares, verdadeiros redutos de conservação e reprodução de memórias historiográficas, especialmente no que diz respeito à História Antiga e Medieval.
Por outro lado, se a passagem da Antigüidade para a Idade Média não pode mais ser compreendida, em absoluto, nos termos de uma suposta “decadência”, como argumentam com propriedade os que empregam o conceito de Antigüidade Tardia, restaria ainda explicar as razões pelas quais o Império Romano do Ocidente se fragmentou. Na verdade, muito embora a perspectiva, digamos, culturalista, assumida por Marrou, Peter Brown e inúmeros outros especialistas seja bastante apropriada na medida em que busca enfatizar os aspectos que não se ajustam a uma visão de ruptura e descontinuidade absolutas, a análise realizada pelos autores tende a ser excessivamente otimista. Nela não há conflitos e tudo parece concorrer para que não tenhamos uma impressão sinistra do fim do Mundo Antigo, razão pela qual afirma Peter Brown (1972: 35): "As profundas modificações religiosas e culturais do fim da Antigüidade não têm por teatro um mundo aterrado pela sombra de uma catástrofe. Longe disso, os homens dessa época formam uma sociedade rica e surpreendentemente compreensiva que se estabiliza e conquista uma estrutura significativamente diferente da classe romana do período clássico."
Conclusão
Quando confrontamos o conceito de Antigüidade Tardia com a realidade social do Baixo Império, permanece sempre a indagação sobre os motivos pelos quais uma civilização que possuía tantos elementos novos, vibrantes e originais não foi capaz, ao fim e ao cabo, de manter-se integrada como havia ocorrido por séculos. Nesse caso, parece-nos necessário reconhecer que a desagregação do Império Romano do Ocidente mediante a regionalização provincial e enfraquecimento do aparelho militar e burocrático estatal é um fenômeno de natureza política, uma vez que o Império era, acima de tudo, uma unidade político-administrativa que integrava em um determinado território mais de uma centena de províncias, as quais apresentavam múltiplas especificidades econômicas e culturais que não podem ser esquecidas.
Sendo assim, podemos dizer que a desagregação do Império deve ser tratada como um tema de História Política. Não daquela que faziam os nossos predecessores, mas de uma História Política renovada em virtude do imenso instrumental teórico de que hoje dispomos (Rémond, 1996). De fato, a dissolução do Estado imperial centralizado e burocratizado nos levaria a supor uma situação na qual o padrão das relações políticas se modifica completamente, tendendo cada vez mais para a regionalização e concentração de poder nas mãos dos grandes proprietários rurais. Nesse sentido, a constituição dos reinos bárbaros foi mais uma etapa desse longo processo de pulverização do poder que atingiu o seu ápice com o feudalismo clássico. A conclusão que se depreende destes fatos é deveras simples: após a desagregação do Império Romano nenhuma outra entidade política o excedeu em territorialidade ou duração no Ocidente.
Podemos dizer que a dissolução do Estado romano se encontra condicionada, em termos mais efetivos, pela inépcia do governo imperial em gerir os conflitos sociais que se apresentam no período do Baixo Império, e isso devido a uma série de fatores, como por exemplo a perda de autoridade por parte do poder constituído em virtude da indefinição das regras sucessórias e das ações perpetradas pelos imperadores com o objetivo de garantir a sobrevivência do Império, as quais descontentam importantes segmentos sociais. A seqüência de usurpações que verificamos ao longo dos três últimos séculos da História de Roma dá bem a medida do enfraquecimento do Estado imperial. Com isso, os indivíduos não se sentirão mais parte integrante de uma coletividade que outrora dominava o mundo, passando a se organizar mediante relações pessoais, sem a interferência estatal. Daí a difusão do patronato, instrumento de aglutinação dos indivíduos em torno de um grande proprietário, que desafia frontalmente o governo imperial.
Ao tratarmos da desagregação do Império priorizando os aspectos políticos desse processo, não estamos de modo algum optando por uma perspectiva reducionista, uma vez que todo conflito social apresenta, naturalmente, inúmeras motivações. As ações que os indivíduos praticam contra a ordem estabelecida são, em muitos casos, uma resposta a transformações ocorridas o âmbito do processo produtivo ou do sistema de valores, de tal forma que, no caso da sociedade romana, os conflitos que põem em risco a manutenção do Império muitas vezes só podem ser entendidos na sua plenitude se nos reportamos às deficiências do modo de produção escravista antigo ou ao combate entre duas visões de mundo, uma pagã e outra cristã, num contexto em que os valores culturais estão se modificando com uma profundidade e rapidez inusitadas. Sendo assim, sejam provocados por fatores econômicos, religiosos ou mesmo políticos, o certo é que os conflitos sociais que irrompem no Baixo Império se tornarão cada vez mais agudos e incontornáveis, desestabilizando o Estado e acarretando a sua dissolução. Nesse momento, o antigo ideal de Res Publica recebe o seu golpe de misericórdia. Doravante, Estado e sociedade tomarão rumos distintos, o que significará o fim do Império em termos efetivos.
Sabemos bem que abordar a desagregação do Império Romano do Ocidente pela via dos conflitos sociais subjacentes às relações entre Estado/Sociedade significa apenas mais uma contribuição no sentido de entender um fenômeno tão complexo em sua totalidade. O que propomos, à guisa de conclusão, não é nem pode ser a última palavra sobre o assunto, mas acreditamos na sua vitalidade teórica. Para finalizar, talvez fosse oportuno mencionar que, a despeito da imensa quantidade de obras que se tem produzido sobre o fim do Mundo Antigo, muito há ainda por fazer se quisermos nos elevar de uma História descritiva rumo a uma História explicativa, de modo que o assunto continua apresentando uma riqueza e um fascínio inesgotáveis para inúmeros pesquisadores os quais, ao longo dos séculos, vêm seguindo de perto o tom quase profético da poesia de Rutílio Namaciano, um autor do século V:
Não estará seguro aquele que te esquecer
Que possa eu louvar-te ainda que o sol
Se torne escuro
Pois contar as glórias de Roma
É como contar as estrelas do céu.
Com este artigo, pretendemos refletir sobre a maneira pela qual as transformações observadas no conhecimento histórico a partir do século XVIII proporcionaram múltiplas interpretações sobre a “queda” do Império Romano. Nesse sentido, analisamos como a mudança na concepção de tempo, a crítica às noções de progresso e decadência e a superação do paradigma positivista permitiram que a transição da Antigüidade para a Idade Média adquirisse um novo significado dentro da historiografia.
Palavras-chave: Mundo Antigo - Desagregação - Historiografia
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Introdução
O fim do Mundo Antigo sempre representou, ao longo da História, um apaixonante tema para todos aqueles que se sentiam atraídos pela “grandeza” e “decadência” de Roma, o que não nos deve suscitar uma excessiva admiração - a expressão “fim do Mundo Antigo” não possui, no espaço desse trabalho, nenhum conteúdo pejorativo, daí que a utilizaremos com freqüência, nas páginas subseqüentes, para definir o ápice de todo um amplo conjunto de transformações que vinham se processando no interior da sociedade romana desde o século III. Estas transformações redefiniram de tal forma o perfil da Civilização Clássica que se torna impossível negar que a Idade Média significou o advento de uma outra civilização, não obstante inúmeros elementos da cultura romana poderem ser detectados sem muito esforço ao longo de todo o período medieval.
De fato, após nada mais nada menos do que dez séculos de História, uma das mais importantes civilizações da Antigüidade encontrava sérios obstáculos à sua manutenção como uma estrutura integrada, sendo atingida por uma série de reveses políticos, econômicos e culturais internos, além de sofrer com problemas de ordem externa, como foi o caso das famosas invasões bárbaras, tidas por muitos como o principal fator responsável pela “queda” do Império Romano do Ocidente (embora os manuais de História Antiga costumem incluir os três séculos anteriores à instauração da República [509 a.C. aprox.] no período de vigência da Civilização Romana, para efeitos deste trabalho julgamos por bem considerar que a Civilização Romana propriamente dita somente se constitui a partir da segunda metade do século VI, momento no qual emergem formas de organização social que poderíamos identificar como sendo tipicamente romanas e não mais etruscas ou mesmo latinas). Por sua vez, a tendência a se atribuir aos “bárbaros” uma maior responsabilidade nos acontecimentos que irão culminar com a desagregação do Império Romano remonta até Comodiano e Ambrósio (séculos III e IV respectivamente). Dentre os historiadores contemporâneos que se afinam com essa concepção, merece referência André Piganiol, que certa vez afirmou: "a Civilização Romana não pereceu de morte natural. Foi assassinada" (1972: 466). Contudo, a maior parte dos autores se inclina por uma análise dos fatores internos da desagregação. Para um maior esclarecimento sobre o assunto, consultar Fernández Ubiña (1982).
Diante de um acontecimento tão insólito como este, os espíritos não poderiam permanecer serenos e passivos. Pelo contrário, tornava-se imprescindível descobrir os motivos pelos quais isto se deu, apontar os indícios de “enfraquecimento” do Império, estabelecer explicações. Aos contemporâneos interessava, particularmente, entender o complexo emaranhado de mudanças que vivenciavam no cotidiano e que na maior parte das vezes os deixavam perplexos, tal a rapidez com a qual se processavam (por exemplo, Agostinho [Sermonis 2 e 7] e Jerônimo [Epistulae 123, 126 e 128]), enquanto que para os seus sucessores o problema se encontrava circunscrito ao domínio da História propriamente dita, com todas as funções capitais que esta assumiu no panorama da cultura ocidental desde a Idade Média: transmissão da Palavra e do Exemplo, veículo da tradição, crítica do presente, decifração do destino da Humanidade, antecipação do futuro, promessa de um retorno (Foucault, s/d.: 477) e, mais recentemente, compreensão das estruturas atuais e planejamento das futuras (Cardoso, 1988: 120).
Sendo assim, desde o século III até os nossos dias, passando por autores como Flávio Biondo (Historiarum ab inclinatione romanorum decada tres, 1453), Montesquieu (Considérations sur les causes de la grandeur des romains et leur décadence, 1734) e Gibbon (History of the decline and fall of the Roman Empire, 1776-88), se produziram múltiplas interpretações sobre o fim do Mundo Antigo em consonância com os próprios pressupostos inerentes ao conhecimento histórico, razão pela qual pretendemos analisar, no decorrer desse trabalho, o modo pelo qual o tema da desagregação do Império Romano do Ocidente acompanhou as transformações historiográficas observadas a partir do século XIX.
Para tanto, partimos de duas premissas fundamentais. Em primeiro lugar, que todas as formações discursivas que emergem em uma dada época provêm de um solo que as possibilita e circunscreve tanto a sua estruturação interna quanto os seus limites. Em segundo lugar que, como definiu magistralmente Georges Lefèbvre (1981: 2), somente podemos propor novas explicações para os fenômenos históricos se conhecermos a historiografia, pois muito embora a escrita da História dependa da exploração de novas fontes ou da leitura de fontes já conhecidas sob uma ótica renovada, ela não depende menos do diálogo com todo um repertório de interpretações pré-existentes.
A História tradicional
O século XIX representou, sem sombra de dúvida, um momento de considerável avanço para a estruturação da História enquanto domínio de saber positivo, com a elaboração de técnicas específicas concernentes ao tratamento das fontes históricas (métodos de erudição crítica), publicação de gigantescas coletâneas de documentos, a exemplo do Corpus Inscriptionun Latinarum, de Mommsen, cujo primeiro tomo apareceu em 1863, e da Patrologia Latina e Grega, de Jean-Paul Migne, um pouco posterior, e o surgimento de grandes escolas históricas nacionais européias sob a égide de historiadores como Ranke, Guizot, Thierry, Michelet e outros, os quais gozavam de grande prestígio junto aos meios universitários da época (Cardoso, 1988: 33-4).
Contudo, não obstante todas essas inovações de caráter técnico-científico, o trabalho dos historiadores do século XIX se encontrava ainda limitado por algumas concepções produzidas em épocas anteriores que resistiriam por muito tempo antes de serem definitivamente superadas. Uma delas, talvez a mais evidente, sustentava que a dimensão por excelência do conhecimento histórico era a ação política (Lefèbvre, 1981: 16), só que não mais esta ação tomada na sua manifestação particular tal como a concebia a Filosofia Política do século XVIII, mas inserida agora numa visão processual que lhe conferia um sentido abrangente e a vinculava à História da Humanidade (Arendt, 1988: 93), advindo daí todo o interesse dos historiadores até meados do século XIX pelas vicissitudes dos Estados e Impérios e suas infindáveis querelas diplomáticas e conflagrações militares. A História Política, de fato, parecia não trazer muitas preocupações à maioria dos historiadores, envolvidos com seus estudos monográficos e exaustivos, adequando-se tanto ao espírito cientificista do positivismo, com o seu interesse pelo estabelecimento de fatos empíricos mediante um estudo acurado da documentação, quanto ao historicismo, dedicado a uma investigação cada vez mais minuciosa do pormenor e à explicação de acontecimentos individuais e irrepetíveis mediante um encadeamento hipotético de causas e efeitos (Barraclough, 1987: 33).
Na sua obsessão pelos acontecimentos políticos, únicos passíveis de uma datação “precisa” e meticulosa que muitas vezes preferia a década ao século, o ano à década, o mês ao ano e assim por diante, os historiadores do século XIX elaboraram periodizações para a História que, devido ao seu excessivo esquematismo, acabaram dando margem a interpretações reducionistas e por demais desconectadas da realidade social, sempre complexa e infinita (Bloch, s.d.: 157-8). No que diz respeito à História Antiga, na tentativa de delimitar com “exatidão” e “rigor científico” o momento em que se deu a passagem da Antigüidade para a Idade Média, os historiadores não hesitaram em eleger o desaparecimento da unidade política imperial nas províncias do Ocidente (o qual, de acordo com a tradição, teria se dado com a deposição do último imperador, Rômulo Augusto, por Odoacro, rei dos hérulos, em 476) como o marco final do Mundo Antigo. A partir de então, inaugurava-se uma nova era na História da Civilização Ocidental cuja única relação que mantinha com a anterior devia-se ao fato de tê-la sucedido no tempo, posto que a “queda” do Império era considerada o acontecimento máximo a condicionar a mutação abrupta em todos os níveis da sociedade.
Uma periodização como essa, elaborada a partir dos acontecimentos políticos que, como sabemos, se caracterizam por uma acentuada mobilidade, produzindo rupturas institucionais freqüentes (Le Goff, 1984: 416), era o instrumento mediante o qual se tornava possível classificar o Baixo Império romano como um período de decadência, declínio, queda, pois atrelava a existência de toda uma cultura à manutenção do Império, unidade essencialmente política. Ao mesmo tempo, a visão expressa pelos conceitos acima mencionados era bastante pessimista. Isso porque, na medida em que a Civilização Clássica havia entrado em “decadência” o período seguinte, isto é, a Idade Média, surgia como a antítese do anterior, a “Idade das Trevas” tão decantada pelos renascentistas, momento de afirmação da barbárie, da descentralização, do obscurantismo, um capítulo à parte na história da “brilhante” Civilização Ocidental.
O Renascimento, é bem verdade, buscara resgatar os valores clássicos negando ostensivamente a experiência medieval, dentro de uma concepção de tempo cíclica segundo a qual a Humanidade passaria por fases regulares de progresso, apogeu e decadência, ao término das quais se retornaria novamente ao ponto de partida por meio da reatualização de um passado otimizado. Os séculos XVII e XVIII refinaram um pouco mais essa concepção com o aparecimento de pensadores que, adotando o tempo linear, não acreditavam na possibilidade de retorno a uma suposta Idade de Ouro (já que o passado jamais poderia voltar a ser o presente e tampouco o futuro), mas sim num desenvolvimento seguido de declínio, dando lugar a uma nova fase de desenvolvimento diferenciada da primeira, de modo que no decorrer desses movimentos oscilantes se obteria uma ascese gradual.
Esse tipo de interpretação parecia eximir a Idade Média de qualquer conteúdo pejorativo, mas na realidade não foi isso o que ocorreu - para uma síntese sobre as diversas vertentes da idéia de progresso desde a Antigüidade até os nossos dias, consultar o artigo de Le Goff (progresso/reação) em Romano (1984: 338-69). No século XVIII, por exemplo, Voltaire defendia um progresso da razão humana mediante a sua revelação empírico-objetiva, mas apontava entraves poderosos a esse progresso: a religião e as guerras (Arrilaga Torres, 1982: 35-6). A referência à Idade Média, período marcado por uma visão de mundo eminentemente religiosa, é aqui evidente. Gibbon (1989: 442-3), no seu monumental trabalho sobre a desagregação do Império Romano, manifestava uma clara influência iluminista ao afirmar que o Império havia sido “engolfado por um dilúvio de bárbaros” e que as seitas cristãs perseguidas haviam se tornado “inimigas do seu país”.
Desse modo a Idade Média, em maior ou menor grau, era vista sempre pelos autores não vinculados à Igreja como um momento de recuo, de retrocesso, o que vinha a reforçar ainda mais o tema da “decadência” de Roma. E nem mesmo toda a reação romântica a favor de um progresso ininterrupto, o que forçosamente negava a existência de uma regressão durante a Idade Média, foi capaz de reabilitá-la aos olhos da maioria dos historiadores. Pelo contrário, a tradição iluminista mostrou-se muito mais vigorosa num mundo que redefinia as fronteiras entre o sagrado e o secular e experimentava um progresso técnico e científico que parecia não ter fim.
De fato, do Renascimento ao século XIX as invenções e descobertas da inteligência humana haviam produzido um mundo que apostava cada vez mais na capacidade do homem em dominar a natureza, reelaborar o seu meio e criar as condições para o bem-estar universal. O progresso era tido, então, como uma meta a ser alcançada no futuro, recusando-se qualquer ideal nostálgico de retorno ao passado. A segunda metade do século XIX assistiu ao triunfo definitivo da ideologia do progresso, em meio ao grande boom econômico e industrial do Ocidente (Le Goff, 1984: 355). Nada parecia capaz de abalar esse progresso, uma vez que nem mesmo os inumeráveis conflitos entre os impérios europeus ao longo de toda a Idade Moderna e princípios da Contemporânea tiveram condições de detê-lo. Diante dessa constatação, o fim do Mundo Antigo se revestiu de uma excepcional importância para os historiadores do século XIX na medida em que representava uma “decadência” e um “recuo” do Ocidente em termos globais, ao passo que todas as demais “decadências” sofridas pelos impérios europeus foram apenas acontecimentos isolados no seio de um progresso ininterrupto, contínuo, irresistível.
Com isso, a “queda” de nenhuma outra civilização suscitou tanta admiração e foi tão exaustivamente estudada como a da Civilização Clássica, instaurando-se um intenso debate entre os historiadores sobre os motivos que provocaram uma ruptura em tal profundidade.
O conceito de decadência, não obstante incluísse critérios morais e culturais, se pautava fundamentalmente por critérios de ordem política (Le Goff, 1984: 416), fazendo derivar das oscilações do sistema político, como já dissemos, a transformação de toda a sociedade. O que se encontra subjacente à utilização desse conceito e, conseqüentemente, à opinião geral que ele visa a expressar, é uma determinada concepção de temporalidade que, embora rompida na passagem do século XVIII para o XIX com a dissolução da episteme clássica, continuou por muito tempo ainda presente no trabalho dos historiadores.
Para os homens da Idade Média e Moderna a história, fosse ela cósmica ou providencialista, era concebida como algo contínuo e uniforme, um processo global de ascensão ou de queda que reunia todos os seres e todas as coisas num movimento único, sem que nada pudesse permanecer inerte (Foucault, s.d.: 477). Devido a isso, domínios de saber como a Biologia, a Filologia, a Economia Política e outros não podiam se constituir, já que para tanto dependiam do isolamento do seu objeto de estudo num certo número de regras que lhes fossem próprias e que possuíssem uma temporalidade particular, desvinculada da história do homem ou do universo. As condições para que isso ocorresse somente se deram no século XIX, com a descoberta de uma historicidade própria ao trabalho, à vida e à linguagem.
Mas a História produzida nas universidades e academias, pelo fato de se voltar quase que exclusivamente para os acontecimentos de natureza política, não fora capaz de absorver de imediato as inovações que estavam sendo geradas em outros ramos do conhecimento e que, dentro em breve, redefiniriam todo o panorama da História tradicional ao instaurar como objetos passíveis de uma análise histórica per se, isto é, sem vinculação estreita com o tempo da política, setores da vida social até então submetidos a essa vinculação ou, em muitos casos, ignorados.
Por outro lado, além desse problema central referente à temporalidade, havia outros que impunham igualmente sérios limites à explicação histórica, como por exemplo a tendência a se considerar a história como o domínio do acontecimento irrepetível, individual e particular, a ausência de hipóteses explícitas que orientassem as pesquisas, a elaboração de explicações superficiais e restritas, sem validade em nível estrutural, a excessiva fixação em fontes escritas e o isolamento da História frente aos notáveis avanços das demais Ciências Humanas, em especial a Sociologia, a Economia e a Demografia (Cardoso, 1988: 36-7).
No limiar da ruptura
Todos esses problemas configuravam uma História tradicional que, desde finais do século XVIII, vinha recebendo críticas de pensadores como Voltaire, Guizot e Michelet, defensores de uma História que se voltasse para o estudo da sociedade como um todo e não apenas para os seus aspectos políticos e que fosse, ao mesmo tempo, explicativa. Do mesmo modo os cientistas sociais, dentre os quais podemos incluir Max Weber, recuperaram estas mesmas críticas contra uma História eminentemente descritiva (Lefèbvre, 1981: 333). Não que todos os historiadores dessa época se preocupassem apenas em narrar os fatos. Pelo contrário, apesar de o positivismo, tal como define Comte, negar à História a capacidade de estabelecer leis gerais acerca dos fenômenos que estuda em função do caráter particular e irrepetível destes, além de rejeitar a noção de causalidade primeira ou final por julgá-la radicalmente inacessível e profundamente inútil (Simon, 1986: 63), alguns historiadores se preocupavam em identificar o nexo causal entre os acontecimentos, mesmo que em nível somente do singular, o que não deixava de ser uma tentativa de se explicar a História, demonstrando-se com isso que os fatos descritos não eram de modo algum contingentes (sobre as noções de causa, determinismo e acaso, ver Arrilaga Torres, 1982: 78-115).
A grande dificuldade era, entretanto, a insuficiência da explicação, vinculada ao particular e limitada ao campo da política. Por outro lado, os historiadores do século XIX não deixavam de atentar, como habitualmente se pensa, para os demais aspectos da sociedade, embora eliminassem qualquer possibilidade de uma análise mais produtiva ao conceberem uma relação de necessidade entre a ascensão ou queda dos impérios e a “decadência” dos demais setores da vida social, ou ao realizarem uma abordagem estanque da realidade na qual cada uma das manifestações da vida humana era tratada separadamente, sem maiores articulações de conjunto, como ocorre com a “História-Quadro” criticada por Lucien Febvre (1977: 111-2).
Dentre todas as severas críticas dirigidas à História tradicional por inúmeros pensadores ainda na segunda metade do século XIX, a mais contundente brotará do trabalho de Marx e Engels, os primeiros a elaborar uma teoria global coerente das sociedades humanas, vistas tanto nas suas leis estruturais quanto nas suas leis dinâmicas ou de transformação (Cardoso, 1988: 34). Agindo assim, o marxismo estimulava uma nova orientação da investigação histórica, afastando-se da análise descritiva de acontecimentos isolados, na maior parte das vezes de ordem política, para se consagrar à investigação de processos econômicos e sociais complexos e de grande extensão.
Além disso, o marxismo preconizava uma abordagem de caráter sociológico, sustentando que os historiadores deveriam dedicar-se ao estudo de formas de organização social recorrentes ao longo da história (Barraclough, 1987: 40-1). Iniciava-se, assim, o lento processo de redefinição dos parâmetros do conhecimento histórico, por meio da superação de procedimentos que muito pouco tinham já a oferecer em termos de um entendimento global da vida do homem em sociedade, o qual só viria a se completar quase um século mais tarde.
No entanto, em que pese toda a importância do materialismo histórico para a expansão dos horizontes do historiador, aquele mantinha ainda um vínculo com a História tradicional que limitou todo o seu desenvolvimento posterior quando a partir de 1917, com a vitória dos bolcheviques, a concepção marxista da História começou a se difundir nos meios acadêmicos europeus: a noção de temporalidade única, resultado direto do determinismo econômico subjacente à interpretação de Marx acerca do devir histórico. Em 1859 escrevia ele:
"Em certa fase do seu desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes (...) De formas evolutivas das forças produtivas que eram convertem-se em seus entraves. Abre-se, então, uma era de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura" (Marx, 1946: 30-1).
Como podemos perceber, Marx aqui ainda pressupõe uma identidade temporal entre os diversos setores da vida social na medida em que concebe para estes uma historicidade única, só que não mais uma historicidade fundada na ascensão ou derrocada dos impérios, mas sim nos movimentos de dissolução e emergência dos modos de produção. Essa perspectiva de abordagem será, mais tarde, acentuada em extremo mediante a utilização do conceito de revolução social pelos historiadores soviéticos quando estes, seguindo as diretrizes do marxismo “oficial” durante o governo de Stálin, se dedicarem ao estudo do processo de transição da Antigüidade para a Idade Média.
Nesse período, verificaremos que a grande maioria dos pesquisadores (senão a sua totalidade), ao trabalharem com a História, selecionaram apenas os dados empíricos que vinham comprovar as teses de Marx, Engels e seus epígonos sobre o devir histórico, não hesitando em deturpar a realidade para alcançar os seus objetivos, os quais se confundiam com os objetivos do Partido Comunista Soviético, isto é, produzir um determinado conhecimento, dito “verdadeiro” porque elaborado segundo os cânones da investigação “científica”, que corroborasse a visão de mundo marxista sobre o passado e, por extensão, validasse os pressupostos do materialismo histórico quanto ao progresso inevitável da humanidade rumo à superação das relações de produção burguesas, tidas por Marx como a última formação social da pré-história humana (Marx, 1946: 32). O predomínio da interpretação oficial da História sustentada pelos historiadores marxistas mais ortodoxos somente será rompido a partir da segunda metade da década de 1950, após a morte de Stálin e a conseqüente abertura política vivenciada pela sociedade soviética.
Para uma nova história
A História tradicional, a despeito de sua ampla aceitação nos meios acadêmicos por historiadores tanto de orientação positivista quanto historicista, não reinava absoluta e isenta de críticas. Muitos já haviam apontado, ao longo do século XIX, as limitações desse tipo de História, principalmente os seguidores do materialismo histórico que, após a Grande Depressão de 1929-1930 e a crise cada vez mais acentuada do sistema capitalista, viram os trabalhos de Marx e Engels serem resgatados do limbo para onde haviam sido lançados pelos pesquisadores europeus outrora maravilhados com os inacreditáveis avanços da sociedade burguesa (Barraclough, 1987: 47).
Mas o marxismo não se encontrava sozinho nessa luta. Ao seu lado se constituía um outro movimento de renovação do conhecimento histórico que estaria destinado a cumprir um papel capital na estruturação da moderna historiografia: a Escola dos Annales. Juntas, ambas as correntes irão desconstruir todo o edifício da História tradicional num esforço lento e contínuo que somente receberá um impulso decisivo após a Segunda Guerra Mundial, quando os historiadores perceberem que o seu ofício, tal como era exercido antes de 1939, não lhes dava mais condições para entender todas as transformações pelas quais passará o mundo durante o conflito.
A Escola dos Annales surgiu em 1929, em torno de uma publicação regular intitulada, a princípio, Annales d’Histoire Économique et Sociale, sob a organização de Lucien Febvre e Marc Bloch, dois dos mais eminente historiadores franceses da época, e congregava diversos pesquisadores que se propunham a escrever uma História renovada em todos os seus aspectos, desde a escolha do objeto e da documentação até os pressupostos teórico-metodológicos da análise. Em suas propostas fundamentais, resultado das severas críticas que dirigiam à História tradicional, os teóricos dos Annales se aproximavam bastante do marxismo, mais não fosse pelo fato de que, embora na maior parte dos países o ensino universitário estivesse vedado aos marxistas e socialistas antes de 1945, somente a França se mostrava mais receptiva para com o materialismo histórico, a exemplo de historiadores como Jaurès, Labrousse e Lefèbvre, adeptos da História Econômica que começava então a se enriquecer com o auxílio da Demografia e da Estatística.
Entretanto, não obstante todas as semelhanças que possamos detectar entre a Escola dos Annales e o marxismo, ambos guardam entre si uma diferença essencial quanto aos postulados da ciência histórica que irá condicionar todos os trabalhos historiográficos produzidos a partir de 1929, além de gerar uma polêmica bastante acirrada entre os seguidores das duas correntes que só mais recentemente logrou um certo abrandamento. Isso porque os Annales, diferentemente do marxismo, incorporam de modo definitivo ao conhecimento histórico e tomam como a sua profissão de fé a noção das temporalidades múltiplas. De fato, tanto Febvre quanto Bloch (s.d.: 158) e os demais, na sua cruzada contra uma História Política excessivamente mecanicista e capaz de gerar sérias deformações devido ao rigor com que os fatos políticos eram tomados como parâmetros de datação, aceitam plenamente a existência não de um tempo único a reger o devir dos seres e das coisas, mas sim de tempos múltiplos que conferem a tudo uma historicidade particular e que se manifestam em concordância com a heterogeneidade dos próprios seres e das coisas.
No momento em que essa descoberta é assimilada pelos historiadores, cujo objeto primordial, além do homem, é o tempo, a duração, conforme afirmava Marc Bloch (s.d.: 29), o todo compacto, cristalizado, uniforme que era a sociedade, se desfaz e nesse movimento liberta os homens, suas ações, obras e instituições da historicidade que os mantinha unidos no interior de um discurso que não mais se sustenta. Percebe-se claramente, a partir daí, que a sociedade é um todo, isso não se pode negar, mas um todo heterogêneo e ao mesmo tempo harmonioso, constituído por múltiplos níveis ou sistemas de acordo com a natureza dos fenômenos sociais, sejam eles econômicos, políticos, ideológicos e outros.
Assim, a língua, as relações de produção e parentesco, as instituições políticas, os códigos de lei, os ritos e doutrinas, a indumentária, as artes maiores e menores, as ideologias, enfim, tudo o quanto existe, criado pela ação do homem em sociedade, é regido por tempos diferenciados não se modificando, necessariamente, num só instante, embora não se neguem as inter-relações que existem entre os sistemas. A dispersão temporal não é mais o limite do trabalho do historiador, o qual lutava desesperadamente para reconstituir a unidade existente entre os acontecimentos, eliminando tudo aquilo que não fosse possível inserir numa narrativa contínua e uniforme. Ela se torna agora a sua condição de possibilidade (Foucault, 1976: 57-8).
Com o recurso às temporalidades múltiplas, abriu-se uma perspectiva inédita para o domínio da História. Agora era possível identificar-se quais os elementos de uma dada formação social haviam resistido ao tempo e permanecido habitando o interior da formação social subseqüente, sem existir mais a preocupação de se delimitar cada cultura no âmbito de um espaço que lhe era inerente e absolutamente específico. Surgem as teorias de Fernand Braudel (1978) sobre a curta, a média e a longa duração, e a História forja para si ou toma das demais Ciências Humanas novas abordagens, objetos, métodos e técnicas. E a História Antiga, como não poderia deixar de ser, é atingida também por esse movimento, voltando à cena as questões em torno da “decadência” do Império Romano do Ocidente.
Nesse sentido, não se aceitava mais a opinião de que a Civilização Clássica havia simplesmente acabado no momento em que Rômulo Augusto foi deposto ou quando se processou a substituição do escravo pelo colono como mão-de-obra dominante (a exemplo do que sustentavam os marxistas mais ortodoxos). Tudo passará a depender, doravante, da perspectiva de abordagem escolhida pelo pesquisador para empreender a sua análise. Um exemplo disso são os historiadores que até hoje se esforçam para provar que a Civilização Romana se desfez no momento em que as invasões “bárbaras” tornaram-se mais numerosas e ofensivas e os chefes germânicos assumiram o poder nas localidades provinciais, juntamente com os bispos e os antigos proprietários romanos ou romanizados. Esse ponto de vista, não obstante possua uma certa coerência, não esgota a problemática, uma vez que resta sempre a pergunta: mas, toda a Civilização Romana se reduzia apenas ao funcionamento satisfatório das instituições político-jurídicas e administrativas? Decerto que não, e isso fornece aos outros sistemas sociais uma importância equivalente à do sistema político ou mesmo do econômico.
Com efeito, se pensarmos em termos de costumes, arte ou ideologia, como comprovar um fim, um esgotamento, uma ruptura? De acordo com as propostas da Escola dos Annales, o que ocorre no período de transição da Antigüidade para a Idade Média é uma renovação, o surgimento de uma nova cultura a partir da fusão de valores clássicos com valores cristãos. Por conta disso, elabora-se um novo conceito com a finalidade de exprimir toda a originalidade e vigor das transformações sociais que atingiram o Império Romano do III ao V século, principalmente após a Anarquia Militar: o de Antigüidade Tardia, oriundo do alemão Spatantike (Martin, 1976: 261), e que teve em Peter Brown (1972) e Henri-Irénèe Marrou (1980) dois notáveis defensores.
De acordo com essa perspectiva, o fim do Mundo Antigo não pode e nem deve ser visto como um período de decadência, queda ou declínio, mas sim de surgimento de novas concepções religiosas e estéticas, de novas invenções e técnicas artísticas que exerceram uma inegável influência sobre as civilizações posteriores. Todas essas transformações se encontram encerradas no conceito de Antigüidade Tardia, o qual possui a atribuição precípua de valorizar a especificidade de um mundo marcado pela fusão da cultura pagã clássica com os valores cristãos e bárbaros que há de aprender-se a reconhecer em sua originalidade e a julgar-se por si mesmo e não através dos cânones de outras idades (Marrou: 1980: 15).
Muito embora a descoberta da historicidade própria que reside no interior dos seres e das coisas tenha se dado, como afirmamos, já na passagem do século XVIII para o XIX, tal acontecimento não foi capaz de reordenar, de um único assalto, todos os discursos produzidos desde então sobre a desagregação do Império Romano, de maneira que ainda hoje o tema da “queda” de Roma permanece como um tema recorrente, por exemplo, nos manuais escolares, verdadeiros redutos de conservação e reprodução de memórias historiográficas, especialmente no que diz respeito à História Antiga e Medieval.
Por outro lado, se a passagem da Antigüidade para a Idade Média não pode mais ser compreendida, em absoluto, nos termos de uma suposta “decadência”, como argumentam com propriedade os que empregam o conceito de Antigüidade Tardia, restaria ainda explicar as razões pelas quais o Império Romano do Ocidente se fragmentou. Na verdade, muito embora a perspectiva, digamos, culturalista, assumida por Marrou, Peter Brown e inúmeros outros especialistas seja bastante apropriada na medida em que busca enfatizar os aspectos que não se ajustam a uma visão de ruptura e descontinuidade absolutas, a análise realizada pelos autores tende a ser excessivamente otimista. Nela não há conflitos e tudo parece concorrer para que não tenhamos uma impressão sinistra do fim do Mundo Antigo, razão pela qual afirma Peter Brown (1972: 35): "As profundas modificações religiosas e culturais do fim da Antigüidade não têm por teatro um mundo aterrado pela sombra de uma catástrofe. Longe disso, os homens dessa época formam uma sociedade rica e surpreendentemente compreensiva que se estabiliza e conquista uma estrutura significativamente diferente da classe romana do período clássico."
Conclusão
Quando confrontamos o conceito de Antigüidade Tardia com a realidade social do Baixo Império, permanece sempre a indagação sobre os motivos pelos quais uma civilização que possuía tantos elementos novos, vibrantes e originais não foi capaz, ao fim e ao cabo, de manter-se integrada como havia ocorrido por séculos. Nesse caso, parece-nos necessário reconhecer que a desagregação do Império Romano do Ocidente mediante a regionalização provincial e enfraquecimento do aparelho militar e burocrático estatal é um fenômeno de natureza política, uma vez que o Império era, acima de tudo, uma unidade político-administrativa que integrava em um determinado território mais de uma centena de províncias, as quais apresentavam múltiplas especificidades econômicas e culturais que não podem ser esquecidas.
Sendo assim, podemos dizer que a desagregação do Império deve ser tratada como um tema de História Política. Não daquela que faziam os nossos predecessores, mas de uma História Política renovada em virtude do imenso instrumental teórico de que hoje dispomos (Rémond, 1996). De fato, a dissolução do Estado imperial centralizado e burocratizado nos levaria a supor uma situação na qual o padrão das relações políticas se modifica completamente, tendendo cada vez mais para a regionalização e concentração de poder nas mãos dos grandes proprietários rurais. Nesse sentido, a constituição dos reinos bárbaros foi mais uma etapa desse longo processo de pulverização do poder que atingiu o seu ápice com o feudalismo clássico. A conclusão que se depreende destes fatos é deveras simples: após a desagregação do Império Romano nenhuma outra entidade política o excedeu em territorialidade ou duração no Ocidente.
Podemos dizer que a dissolução do Estado romano se encontra condicionada, em termos mais efetivos, pela inépcia do governo imperial em gerir os conflitos sociais que se apresentam no período do Baixo Império, e isso devido a uma série de fatores, como por exemplo a perda de autoridade por parte do poder constituído em virtude da indefinição das regras sucessórias e das ações perpetradas pelos imperadores com o objetivo de garantir a sobrevivência do Império, as quais descontentam importantes segmentos sociais. A seqüência de usurpações que verificamos ao longo dos três últimos séculos da História de Roma dá bem a medida do enfraquecimento do Estado imperial. Com isso, os indivíduos não se sentirão mais parte integrante de uma coletividade que outrora dominava o mundo, passando a se organizar mediante relações pessoais, sem a interferência estatal. Daí a difusão do patronato, instrumento de aglutinação dos indivíduos em torno de um grande proprietário, que desafia frontalmente o governo imperial.
Ao tratarmos da desagregação do Império priorizando os aspectos políticos desse processo, não estamos de modo algum optando por uma perspectiva reducionista, uma vez que todo conflito social apresenta, naturalmente, inúmeras motivações. As ações que os indivíduos praticam contra a ordem estabelecida são, em muitos casos, uma resposta a transformações ocorridas o âmbito do processo produtivo ou do sistema de valores, de tal forma que, no caso da sociedade romana, os conflitos que põem em risco a manutenção do Império muitas vezes só podem ser entendidos na sua plenitude se nos reportamos às deficiências do modo de produção escravista antigo ou ao combate entre duas visões de mundo, uma pagã e outra cristã, num contexto em que os valores culturais estão se modificando com uma profundidade e rapidez inusitadas. Sendo assim, sejam provocados por fatores econômicos, religiosos ou mesmo políticos, o certo é que os conflitos sociais que irrompem no Baixo Império se tornarão cada vez mais agudos e incontornáveis, desestabilizando o Estado e acarretando a sua dissolução. Nesse momento, o antigo ideal de Res Publica recebe o seu golpe de misericórdia. Doravante, Estado e sociedade tomarão rumos distintos, o que significará o fim do Império em termos efetivos.
Sabemos bem que abordar a desagregação do Império Romano do Ocidente pela via dos conflitos sociais subjacentes às relações entre Estado/Sociedade significa apenas mais uma contribuição no sentido de entender um fenômeno tão complexo em sua totalidade. O que propomos, à guisa de conclusão, não é nem pode ser a última palavra sobre o assunto, mas acreditamos na sua vitalidade teórica. Para finalizar, talvez fosse oportuno mencionar que, a despeito da imensa quantidade de obras que se tem produzido sobre o fim do Mundo Antigo, muito há ainda por fazer se quisermos nos elevar de uma História descritiva rumo a uma História explicativa, de modo que o assunto continua apresentando uma riqueza e um fascínio inesgotáveis para inúmeros pesquisadores os quais, ao longo dos séculos, vêm seguindo de perto o tom quase profético da poesia de Rutílio Namaciano, um autor do século V:
Não estará seguro aquele que te esquecer
Que possa eu louvar-te ainda que o sol
Se torne escuro
Pois contar as glórias de Roma
É como contar as estrelas do céu.