Ao longo da experiência histórica brasileira a diferença entre negros e brancos foi construída, culturalmente. A classificação e a hierarquização racial articuladas no contexto da escravidão insistiram em regular as relações entre negros e brancos mesmo depois do 13 de maio de 1888. Isso ocorreu porque, uma vez constituídas e reproduzidas, essas hierarquias foram introjetadas por outras instituições para além da própria escravidão. Em outras palavras: o racismo contaminou a polícia (o que explica a atenção que as forças policiais davam às rodas de samba e aos capoeiras), a Igreja, a burocracia do estado e a educação no Brasil, mesmo depois da abolição. Aí está um dos pontos mais queridos pelo ENEM nos últimos anos.
A escola, enquanto instituição social responsável pela
organização, transmissão e socialização do conhecimento e da cultura, foi um
desses espaços em que as representações negativas sobre o negro foram
difundidas. E por isso mesmo ela também é determinante para que essas mesmas
visões possam ser superadas. A fome, a pobreza e a desigualdade em nosso país
têm incidido com mais contundência sobre os descentes de africanos, por isso
alguns intelectuais defendem a ideia de que a marginalidade tem cor no Brasil.
E a reversão desse quadro traz a necessidade de políticas públicas específicas,
notadamente na educação.
Simultaneamente – e isso é muito caro ao ENEM –
o resgate da positividade da cultura negra, a sua beleza, e sua contundente
participação na constituição da nossa formação cultural precisam ser exaltadas
da mesma forma que o estudo acerca da escravidão é caminho incontornável para a
compreensão da formação social brasileira.
A escravidão na Colônia
A escravidão foi uma instituição central para a montagem do
projeto colonizador português a inícios da Idade Moderna. É conhecida a teoria
de que a escravidão era o único meio de garantir braços em larga escala
para a lavoura canavieira, na medida em que a utilização de trabalhadores
livres numa área de fronteiras abertas (lembre-se que na colônia a
terra não era uma mercadoria e, portanto, sua obtenção não era fruto de poder
aquisitivo – assim que trabalhador livre se sujeitaria a trabalhar para alguém
se poderia ser proprietário?) poderia gerar um cenário de pequenos
proprietários produzindo para a própria subsistência – algo bem distante dos
reais interesses mercantilistas portugueses.
Superada a ideia de uma escravidão indígena – tanto pela
dispersão das tribos ao longo do litoral quanto pelo conhecimento do território
que facilitava as fugas e o interesse da Santa Sé em catequizar o gentio –
emerge outra justificativa para a utilização da mão de obra escrava negra:
a escravidão poderia ser alimentada por um tráfico internacional altamente
lucrativo que criaria um circuito de acumulação pela burguesia portuguesa,
integrando diferentes áreas do império ultramarino como a África, a América e a
Ásia.
Mas a escravidão possuía uma outra significação
determinante. Dado que aqueles que se aventuravam pelo Brasil viam na posse de
homens a obtenção de um status que seria mais difícil de alcançar na Europa, a
compra de escravos era uma necessidade social além de econômica. E se
esse produto tão determinante (o escravo) tinha sua venda monopolizada pelos
portugueses, concluímos que a Metrópole monopolizava as regras de acesso a um
artigo determinante e que, por isso, poderia exigir dos colonos- seu mercado
consumidor de escravos- qualquer produto como forma de troca: o açúcar, por
exemplo.
Assim, se a Igreja funcionava – através dos jesuítas –
como instituição normatizadora dos costumes coloniais, os padrões de
produção econômica eram exigidos organicamente pelo fornecimento de mão de obra
escrava.
A escravidão-instituição acompanhou o desenvolvimento da
própria colônia. O aumento da produção colonial, provoca o aumento do comércio
de escravos. Crises econômicas determinavam menores quantidades de negros
entrando nos portos brasileiros. A dinamização da economia e
sua.complexificacão em meio à urbanização do século XVIII minerador
determinou mudanças também na lógica escravocrata. Se os escravos rurais eram
dedicados ao eito e com pouco contato com outros grupos sociais, os novos escravos
urbanos recebiam a permissão de “ganhar dinheiro” – e por isso eram
chamados de escravos de ganho – oferecendo serviços diversos nas ruas
e entregando uma parte aos seus senhores. Essa dinamização complexifica também
a própria realidade dos escravos que se por um lado têm mais possibilidades de
se organizarem conjuntamente (lembrem-se das Irmandades Religiosas de negros na
área das Minas Gerais), podem também redefinir seus signos de pertencimento à
sociedade.
Escravos alforriados compram escravos e tentam se
diferenciar através do uso de roupas e sapatos, o que se por um lado marca sua
ascensão numa certa escala social cotidiana por outro não evita a manutenção do
preconceito.
A escravidão no Brasil Independente
A chegada da família real em 1808 produziria mudanças
drásticas no sistema escravocrata. A suspensão do pacto colonial permitiu a uma
elite genuinamente colonial participar de uma atividade até então restrita aos
portugueses. São oscomerciantes de grosso trato. Empolgados com as
possibilidades de altíssimos ganhos com a atividade traficante esses
comerciantes aumentam de maneira absurda a chegada de africanos aos portos
brasileiros, notadamente o porto do Rio de Janeiro que desde 1763 era a sede
administrativa da colônia e agora se tornava a sede do Império Português.
O Primeiro Reinado (1822-1831) marcou a montagem
de um estado nacional em meio a uma sociedade politicamente invertebrada, de
poucas conexões além da língua e ainda dependente da escravidão, instituição
que recebia cada vez maiores críticas da comunidade internacional. Não à toa,
alguns próceres do novo estado nacional defendiam abertamente o fim da
escravidão como José Bonifácio. Entretanto o lobby dos comerciante de escravos
e seus impostos, bem como os interesses de uma elite rural que não conseguia
imaginar a economia agrário exportadora sem a mão de obra escrava pressionavam
o governo ao ponto de conseguirem tornar inócua uma lei que abolia o tráfico de
escravos, publicada em 1831 (Lei Para Inglês ver).
O Período Regencial (1831-1840) marcou uma guinada
na concepção da escravidão no Brasil graças à Revolta dos Malês (1835).
A insurreição de escravos islamizados em Salvador produzia o temor salutar na
elite brasileira, também amedrontada pelas notícias que chegavam da
independência do Haiti. Começam a ganhar força e corpo as demandas pelo fim da
escravidão – ou ao menos do tráfico negreiro. A grande concentração de escravos
no Brasil trazia o fantasma da haitinização do Brasil.
O Segundo Reinado (1840-1889) começa sob a
urgência de consolidar um estado nacional ainda convalescente de um imperador
que renunciara e de praticamente uma década de revoltas que ameaçaram a unidade
territorial. A engenharia política da centralização e da ordem foi assumida
pelos medalhões do Partido Conservador ou Saquaremas, notadamente a Trindade
Saquarema(o Visconde de Itaboraí, o Visconde do Uruguai e Euzébio de Queirós).
Os Saquaremas reconheciam a necessidade de um poder central
forte (representado pelo poder moderador) que anulasse as clivagens
políticas e regionais internas em nome de uma ordem que, aos poucos, conduziria
e disponibilizaria direitos políticos a uma quantidade cada vez maior de
cidadãos rumo a uma lógica liberal.
Do outro lado do espectro político imperial estava o Partido
Liberal, apelidado de Luzia. Figuras como Tavares Bastos, deputado por
Minas Gerais, exigiam o liberalismo imediato, criticavam a centralização
asfixiante do império e reivindicavam a ampliação dos direitos políticos e
sociais como premissa da interação do Brasil com as sociedades civilizadas do
mundo. Dentro do Partido Liberal as demandas pelo fim da escravidão eram cada
vez maiores, ainda que o abolicionismo não configurasse uma bandeira efetiva do
partido. A retórica liberal de crítica à centralização monárquica assustava a
elite cafeicultura tradicional do Vale do Paraíba fluminense que via na
manutenção da monarquia e garantia de permanência da escravidão.
Ciente da necessidade de equilíbrio do jogo político, o governo
por vezes contemporizava com as demandas liberais indicando gabinetes
(lembre-se que o Brasil era um estado Parlamentarista onde o primeiro ministro
era escolhido pelo Imperador, por isso a possibilidade de alternar os dois
partidos no poder) luzias que aceleravam a aprovação de medidas paulatinamente
desarticuladoras da escravidão. Prova disso foi o empenho na atração de
imigrantes a partir da década de 1850, através do sistema de parceria que
contou com recursos do próprio governo e com a condução de um senador do
Império, Nicolau do Campos Vergueiro.
A partir de finais da década de 1860 autores como Joaquim
Nabuco, membro do Partido Conservador, assumem de maneira enfática o
abolicionismo, exaltando uma lógica de desenvolvimento social pautada pela
prudência, pela moderação mas sempre pelo desenvolvimento paulatino,
progressivo das instituições em nome da modernização no Brasil. A escravidão
precisava ser superada para que o Brasil se modernizasse. O recado
abolicionista de Nabuco é mal interpretado pela ala conservadora dos
Saquaremas, que viam no fim da escravidão uma ameaça à Monarquia. Isso causa um
racha no principal partido do país.
A efervescência do quadro político seria radicalizada pela
entrada dos republicanos na cena nacional. Em 1870, o Manifesto Republicano
assumia a bandeira do federalismo e aos poucos abraçava a bandeira do
abolicionismo. A monarquia deixava de ser uma garantia para os escravocratas-
-o que obviamente desgastou a relação entre o governo e seus antigos defensores
do Vale do Paraíba.
O negro na sociedade de classes
Desde 1871, a Lei de abolição gradual da escravidão foi
aprovada no Brasil. Se o tráfico intercontinental de escravos já havia sido
definitivamente pela Lei Eusébio de Queirós (1850), a chamada Lei do
Ventre livre anunciava que a escravidão seria abolida lentamente, através
da liberdade do ventre escravo.
Ao contrário da ameaça representada pela interferência
direta da Inglaterra, em 1850 – lembrem-se da Bill Aberdeen – a lei
de 1871 foi fruto de um jogo interno e a iniciativa foi da Coroa. Para muitos
contemporâneos, a Lei do Ventre Livre não significou mais do que uma forma de
dar segurança aos proprietários e legitimar a manutenção da instituição por
mais algum tempo.
Em 1885, era publicada a Lei dos Sexagenários e,
em 1888, a Lei Áurea acabava com a escravidão sem garantir
indenização aos proprietários. Muitos deles assumiram definitivamente o apoio à
República, e ficariam conhecidos como republicanos de última hora. Pouco
mais de um ano depois, a República era proclamada.
A problemática da transição da ordem social escravocrata e
senhorial para o ambiente do capitalismo próprio da República que nascia em
1889 evidenciaria a condição de marginalidade do negro. O esforço de inserção
na nova ordem social – ancorada no estilo de vida individualista e
competitivo próprio do liberalismo capitalista – era frustrado pela
desorganização de negros e mulatos no novo contexto social. Isso porque a
extinção da escravatura não promoveu a reintegração dos antigos escravos,
relegando-os ao seu próprio destino, mantidos à sombra da sociedade que se
modernizava.
O estatuto de pessoas juridicamente livres não significou,
portanto, mudança substancial na condição de excluídos dos antigos escravos,
impedindo-os de alçarem-se categoria de cidadãos.Marcados pela pauperização e
desorganização, os negros viviam dentro da cidade, mas não progrediam com ela.
O fim da escravidão não significou portanto a liberdade para o negro.
Desafios do movimento negro no século XX
Para reverter esse quadro de marginalização no alvorecer da
República, os libertos, ex-escravos e seus descendentes instituíram os
movimentos de mobilização racial negra no Brasil, criando inicialmente dezenas
de grupos (grêmios, clubes ou associações) em alguns estados da nação. Em
São Paulo, a agremiação negra mais antiga desse período foi o Clube 28 de
Setembro, constituído em 1897.
Simultaneamente, apareceu o que se denomina imprensa
negra: jornais publicados por negros e elaborados para tratar de suas
questões. A imprensa negra conseguia reunir um grupo
representativo de pessoas para empreender a batalha contra o “preconceito de
cor”. Esses jornais enfocavam as mais diversas mazelas que afetavam a população
negra no âmbito do trabalho, da habitação, da educação e da saúde, tornando-se
uma tribuna privilegiada para se pensar em soluções concretas para o problema
do racismo na sociedade brasileira.
Na década de 1930, o movimento negro experimentou enorme
avanço com a fundação, em 1931, em São Paulo, da Frente Negra Brasileira (FNB).
Na primeira metade do século XX, a FNB foi a mais importante entidade negra do
país conseguindo converter o Movimento Negro Brasileiro em movimento de massa.
Em 1936, a FNB transformou-se em partido político e pretendia participar das
próximas eleições, a fim de capitalizar o voto da “população de cor”, mas veio
o golpe do Estado Novo em 1937 e os partidos políticos foram suspensos.
A reorganização efetiva do movimento negro se deu no final
da década de 1970, no turbilhão dos movimentos de contestação à ditadura
iniciada em 1964. Em 1978 dá-se a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU)
inspirado na luta a favor dos direitos civis dos negros estadunidenses (Martin
Luther King, Malcon X).
Com a reabertura política o movimento negro assumiu uma
postura mais enfática e contundente. O 13 de Maio, dia de comemoração festiva
da abolição da escravatura, transformou-se em Dia Nacional de Denúncia Contra o
Racismo. A data de celebração do MNU passou a ser o 20 de Novembro (presumível
dia da morte de Zumbi dos Palmares), a qual foi eleita como Dia Nacional de
Consciência Negra. Para incentivar o negro a assumir sua condição racial,
o MNU resolveu não só despojar o termo “negro” de sua conotação pejorativa, mas
o adotou oficialmente para designar todos os descendentes de africanos
escravizados no país. Assim, ele deixou de ser considerado ofensivo e passou a
ser usado com orgulho pelos ativistas, o que não acontecia tempos atrás. O
termo “homem de cor”, por sua vez, foi praticamente proscrito. Outra
característica do movimento negro nos últimos anos é que ele “africanizou-se”,
buscando a promoção de uma identidade étnica específica do negro, com a
incorporação do padrão de beleza, da indumentária e da culinária africana.
excelente artigo!
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