quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

RAZÕES PARA ESCREVER


Creio que há quatro grandes motivos para se escrever prosa. Em diferente grau, esses motivos estão presentes em cada escritor. Em qualquer  escritor, as proporções deles variam de tempo em tempo de acordo com o ambiente em que vive. Esses motivos são:

(I) Puro egoísmo. O desejo de parecer inteligente, de ser comentado, de ser lembrado após a morte, para obter voltar às costas aos adultos que o desprezaram na infância, e assim por diante. É uma farsa fingir que isso não é um motivo. E um motivo forte. Os escritores compartilham essa característica com cientistas, artistas, políticos, advogados, soldados, empresários bem-sucedidos   – em suma, com toda a crosta superior da humanidade. A grande massa da humanidade não é tão egoísta. Após a idade de cerca de trinta anos quase todos abandonam a sensação de serem indivíduos e passam a  viver principalmente para os outros ou simplesmente sufocada sob a labuta. Mas há também a minoria de pessoas talentosas, teimosas, determinadas a viver suas próprias vidas até o fim.  Os escritores pertencem a essa classe. Os escritores sérios, devo dizer, são em geral mais vaidosos e egocêntricos do que jornalistas, embora menos interessados ​​em dinheiro.

(II) Entusiasmo Estético. A percepção da beleza no mundo externo, ou, ao menos, nas palavras e seu arranjo preciso. Prazer no impacto de um som sobre o outro, na firmeza da boa prosa ou o ritmo de uma boa estória. O desejo de compartilhar uma experiência que se sente é valioso e não deve ser desconsiderado. O motivo estético é muito fraco para um monte de escritores, mas mesmo um panfletário ou escritor de livros didáticos terá palavras queridas e frases que lhe apetecem não por razões utilitárias. Ele pode até ter sentimentos  fortes acerca a tipografia, a largura das margens, etc. Acima do nível de um guia ferroviário, nenhum livro é o suficiente livre dessas considerações estéticas.

(III) Impulso histórico. Desejo de ver as coisas como elas são, para descobrir fatos verdadeiros e guardá-los para o uso da posteridade.

(IV) Propósito político. Uso a palavra “político” no sentido mais amplo possível. O desejo de empurrar o mundo a uma  direção, a ideia de mudar o pensamento das pessoas sobre o tipo de sociedade pela qual se devem esforçar para terem. Mais uma vez, nenhum livro é genuinamente livre de preconceitos político. A opinião de que a arte não deveria ter nada a ver com política é em si uma atitude política.

George Orwell, "Why I Write" 1946

Original em inglês disponível em:http://orwell.ru/library/essays/wiw/english/e_wiw

 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

UMA NARRATIVA DO SER EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS


Um dos temas desse livro é a narrativa sobre a viagem do ser, não só como deslocamento físico, mas como transformações pessoais que os personagens e, principalmente Riobaldo, sofrem no decorrer dos acontecimentos. Estas transformações iniciam-se como conflitos frente aos aspectos contraditórios do sertão - enquanto espaço físico que abriga belezas e crueldades, vidas e mortes, aves, flores e bichos peçonhentos - e, deste mesmo sertão enquanto símbolo da amplitude e do estreitamento das relações humanas. Amplitudes de amores e estreitamentos de ódios e vinganças. A tessitura do livro se fará através da narrativa do personagem, o qual pretende transformar-se pela reconstrução de seu passado em texto, sendo esta uma maneira de compreender o ser, a vida e seus movimentos. É desta maneira que o personagem anuncia esta tarefa de transformar a ex-istência em um novo texto:

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil, peixe vivo no moquém: quem mói no aspro, não fantasêia. Mas agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia. (Rosa, 1985, p. 11)

A questão da narrativa dos movimentos do ser na busca pelo desvelar-se é, a todo momento, destacada no texto, e Riobaldo narrador-personagem tem a constante preocupação de buscar “o justo dizer dos acontecimentos”, ou seja, de ser capaz de se comprometer e avaliar cada acontecimento com sua exata importância, pois cada passagem da vida tem seu peso e seu significado enquanto experiência que fundou memórias e consciências.

Contar seguido, alinhavado, só mesmo coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. (Rosa, 1985, p.95)

 Diante desta e de outras colocações no texto sobre a importância e a dificuldade do narrar (“Contar é muito, muito dificultoso”), é possível colocar-se em acordo com os dizeres: “O que determina o texto é a vida, mas o que explica a vida é o texto.” (Galvão, 1982, p.86). Assim,

pode-se pensar que a narrativa é a malha das letras que - no texto - enunciam as posicionalidades através das experiências do personagem nesta viagem do ser-viver: existir.

Durante sua narrativa, Riobaldo vai denunciando a existência dos contraditórios das experiências e marcando-os com exemplos da terra e das convivências. Estórias de mandioca boa que se torna brava e mata; de águas límpidas que destroem facas que ali caem; de lugares belos onde habitam animais peçonhentos, osgas. Estórias como a de Pedro Aleixo que mata um velho e por castigo vem a cegueira de seus filhos; do menino Valtêi que abre a perna de uma mulher e recebe sadicamente o castigo dos pais que o surram até a morte; de Maria Mutema que sem motivo aparente mata o marido e o padre com o chumbo físico e o simbólico - a palavra.

Guimarães Rosa constrói o texto a partir dos constantes contraditórios que habitam o ser e o viver e que impedem ao homem a unidade e coerência absoluta - próprios do pensamento totalitário iluminista. Quando o homem crê atingir a unidade, os sentimentos se misturam, os fatos alteram-se, os caminhos mudam de rumo, e é esta presença de sentidos e sentimentos outros que desconstroem organizações anteriores e movem as transformações do ser nessa viagem. É a dificuldade, senão impossibilidade de ser UM, que torna o viver perigoso e que traz o diabo na rua no meio do redemoinho.

 Ao desorganizar o organizado do raciocínio totalitário iluminista, o homem tem de reiniciar sua busca de sentidos, projetos e linguagens. E, só pode haver novos sentidos, projetos e significados onde houve deslocamento e desconstrução dos mesmos. Traduzindo em uma outra linguagem: a ordem dada do mundo fundado sob o racionalismo ocidental e sua hegemonia política e cultural - baseada na obrigatoriedade da uniformidade de pensar-sentir descrever-escrever o homem e a nação - é alterada pela emergência de uma pluralidade de discursos que tecem relações e percepções diversas em relação a esta mesma hegemonia, e

que traduzem formas de alteridades e de outros projetos para ser-se.

Na linguagem metafórica de Guimarães Rosa, Riobaldo e Diadorim são representações deste deslocamento desconstrutivo de sentidos, desta constante contradição textual tecida na narrativa da linguagem, dos gestos e dos gêneros. Como forma de garantir uma ilusão de unidades e universalidades a cultura construiu as categorias sexuais masculinas x femininas, as quais são um roteiro de signos específicos que determinam pelo gesto, pela linguagem, pelo comportamento e pelo corpo (textual ou não), a definição do que é ser homem e do que é ser mulher.

Na viagem do ser de Grande Sertão Veredas, Guimarães Rosa explicita a fragilidade destas categorias através da relação de Diadorim e Riobaldo. Justamente estas categorias que garantem uma segurança social e política pela ordenação de identidades, também são passíveis de desconstruções de sentidos, sentimentos e de significados, os quais aparecem através de gestos e sentimentos contraditórios que surgem e nutrem-se na relação entre os dois jagunços.

Nesse itinerário onde busca desvelar o ser, o travestimento de Diadorim é um signo denunciador da presença do duplo no suposto Uno. O amor de Riobaldo e Diadorim segue esta

mesma direção e traz nas entrelinhas do texto toda a dificuldade cultural de lidar-se com as desconstruções das categorias sexuais masculinas x femininas.

Isto aparece no constante ir-e-vir dos sentimentos de amor x vergonha e nojo tão presentes nas falas de Riobaldo. E, curiosamente os sentimentos de vergonha e nojo são sentimentos de apreciação do eu e expressam a depreciação que a pessoa sente por não estar escrevendo-se dentro dos cânones do dever ser e parecer ocidental. O dever parecer não suporta duplos, deslocamentos e sentidos outros que denunciem contraditórios, por ser ele a representação maior do pensamento iluminista da unidade pura e natural que garante a ordem do universo. É este pensamento iluminista que obstrui sentidos e significados outros ao ser, ao colocar como NATUREZA HUMANA determinados comportamentos e linguagens concebidas, escritas e lidas como masculinas e femininas. Assim, ele elimina o conceito de ser, de cultura e de sua constante transformação pelas teias de significados construídos em um determinado contexto histórico-econômico-social. Eliminando presenças, cultura e suas significações contextuais, ele escreve identidades imutáveis e cristalizadas, onde qualquer gesto contrário é destacado como desvio de conduta, doença e loucura.

A perspectiva da cultura como mecanismo de controle inicia-se com o pressuposto de que o pensamento humano é basicamente tanto social como público - que seu ambiente natural é o pátio familiar, o mercado e a praça da cidade. Pensar consiste não nos “acontecimentos na cabeça“ (embora seja necessário acontecimentos na cabeça e em outros lugares para que ele ocorra), mas num tráfego entre aquilo que foi chamado por G.H.Mead e outros de símbolos significantes - as palavras, para a maioria, mas também os gestos, desenhos, sons musicais, artifícios mecânicos como relógios, ou objetos naturais como jóias - na verdade, qualquer coisa que esteja afastada da simples realidade e que seja usada para impor um significado à experiência. (Geertz, 1978)

A afirmação de que o pensamento iluminista elimina o conceito de presença, ser e de cultura, tal como exposto anteriormente, implica que este modo de pensar atém-se à descrição dos fatos e ao relacionamento de causas e efeitos, onde os fatos não dizem mais do que autorizam por sua presença: eles dizem por si, independente de seus contextos culturais e históricos que lhes atribuem significados, por serem esses contextos construções humanas expressas através da linguagem. O fato em si, o signo em si, a observação do mundo em si, reduz a atividade reflexiva, fenomenológica e linguística do ser humano a meros sinais gráficos que ilustram e ecoam vozes já faladas, sem a possibilidade da dialogia e da polifonia de vozes que emergem em outros contextos de presenças, configurando modos outros de existência.

Em verdade, todo este problema se dá em função de uma questão de método.

Etimologicamente, método significa seguindo um caminho (do grego méta, junto, em companhia, e hodós, caminho) e, o pensamento iluminista seguiu o caminho da observação objetiva como regra fundamental, a qual excluía a imaginação e a possibilidade de transformação de significados nos processos construtivos do homem como um ser próprio e também histórico social e político.

De agora em diante o espírito humano renuncia de vez às pesquisas absolutas (...) Circunscreve seus esforços ao domínio (...) da verdadeira observação, única base possível de conhecimentos verdadeiramente acessíveis, sabiamente adaptados às nossas necessidades reais. (...) Reconhece de agora em diante, como regra fundamental, que toda proposição que não seja estritamente redutível ao simples enunciado de um fato, particular ou geral, não pode oferecer nenhum sentido real e inteligível. (...) A pura imaginação perde assim, irrevogavelmente, sua antiga supremacia e se subordina necessariamente à observação (...) (Augusto Comte. Discurso sobre o espírito positivo, Col. Os Pensadores, p.54).

Diante desta redução do imaginário à mera descrição de fatos, pode-se pensar que Guimarães Rosa busca denunciar que a mutabilidade humana implica a presença de contraditórios que deslocam, desconstroem e transformam signos, significados e definições, fazendo da identidade não uma couraça enrijecida na repetição do mesmo - homogeneidade dos deveres naturais, dos fatos em si, mas uma metamorfose fenomenologicamente nunca acabada que ocorre a cada novo comprometimento da pessoa em seu contexto histórico-pessoal. São estes deslocamentos e desconstruções de sentidos e desvelamentos do ser que este texto pretende analisar, utilizando para tal a narrativa de Riobaldo sobre sua relação com Diadorim.

No primeiro momento da narrativa, a posição ocupada por Riobaldo em relação a Diadorim é a de ser subalterno. Riobaldo, no início da atividade de jagunço, repete a relação de subserviência quando do encontro com o menino Diadorim nas margens do Rio São Francisco.

Ele, uma criatura assustada e temerosa, que veio sendo dito e escrito pela política de posições do contexto local, desde a morte de sua mãe.

Nesta condição de órfão de mãe e de um pai desconhecido, ele veio sendo nomeado pelo menino Diadorim como medroso; por seu padrinho Selorico Mendes como inábil para o jagunceio (tanto que alfabetizou-o por crer em sua incapacidade para a vida dura de jagunço);  por Zé Bebelo que contratou-o apenas para as escritas e as letras; e por seus companheiros de  bando que apelidaram-no de Riobaldo Tatarana (do tupi Tata rana: semelhante a fogo).

Enquanto ser nomeado pelo outro - dentro das necessidades e conveniências de cada um - ele  acreditava-se de menor posição, não existente, e assim submetia-se, indiferenciava-se, ocultava-se. Assim, ele narra-se: “Por mim, não sei que tontura de vexame, com ele calado eu a ele estava obedecendo quieto.” (Rosa, 1985, p.27).

Ocupando esta posição, Riobaldo teme ser, teme a vida e o nomear-se, a ponto de não discernir o que lhe ocorre, ou melhor, de ainda não ser capaz de imaginar e escrever seu próprio  texto e história. É este ser escrito por outrem que afirma:

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas e no meio da travessia não vejo! - só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. (Rosa, 1985, p.33).

Riobaldo na condição de subalterno é ao pé-da-letra, apesar de ser letrado. E sua letra maior foi Diadorim: “Amor vem de amor. Em Diadorim, penso também - mas Diadorim é minha neblina...” (Rosa, 1985, p.23).

No Dicionário de Símbolos, a neblina (nevoeiro) é definida como:

Símbolo do INDETERMINADO, de uma fase de evolução: quando as formas não se distinguem ainda, ou quando as formas antigas que estão desaparecendo ainda não foram substituídas por formas novas precisas. (Chevalier, 1982,p.634).

Essa definição simbólica pode ser a reafirmação da condição de subalterno de Riobaldo, a qual implica uma escritura reduzida e simplificada do mundo dos acontecimentos, já que não pode ter acesso a um rol maior de informações e poderes de decisão. Enquanto posição política, ao subalterno resta a obediência às ordens e a disponibilidade constante de correr perigo para provar-se digno de confiança - porque corajoso. Apenas sob este enfoque o subalterno é visto, mas não reconhecido, por ainda ser determinado e nomeado por um outro hegemônico.

Walnice N. Galvão formula com enorme clareza o texto sobre quem é o subalterno:

Livre, e por isso mesmo dependente. Sem ter nada de seu, e por isso mesmo servidor pessoal de quem tem. Inconsciente de seu destino, e por isso mesmo tendo seu destino totalmente determinado por outrem.

Sem causas a defender, e por isso mesmo usado para defender causas alheias. Avulso e móvel, e por isso mesmo chefiado autoritariamente e fixado em sua posição de instrumento. Posto em disponibilidade pela organização econômica, que não necessita de sua força de trabalho, e por isso mesmo encontrando quem dele disponha para outras tarefas que não as da produção. Tal é a condição dessa imensa massa de sujeitos disponíveis em suas “existências avulsas”, que estavam aí para serem usados, e que o foram, ao longo de toda a história brasileira. (Galvão, 1972, p.41)

É sobre esta condição e posição que a vida será constituída, escrita e narrada por Riobaldo. Seu olhar é o olhar de:

um membro de um grupo armado a serviço de senhores em oposição ao governo, onde ao partilhar da condição jagunça partilha de um potencial de força manipulada por outrem para o exercício do poder.

Esta força é passível de ser utilizada para o trabalho como para a destruição, para impor a lei como para transgredi-la, para vingar ofensas como para praticá-las e as razões que decidem sua atuação num ou noutro sentido independe de sua escolha. Tudo o que se passa fora da imediatez das tarefas cotidianas está também fora do alcance de sua consciência. (Galvão,1972, p.47).

Inicialmente, são sob estes motivos e condições que Riobaldo escreverá Diadorim como significante do herói trovadoresco que inspira odes épicas e que encanta por suas bravuras e aventuras; bem como por suas delicadezas e primores no tato e trato para com a natureza e para com determinadas atividades.

O conhecimento que Riobaldo constrói de Diadorim vem de sua própria atitude passivo-contemplativa do mundo, já que indiferenciado ele não se sabia. O não saber-se - porque ainda misturado no mundo e na natureza, como Ulisses antes da fundação de Ítaca - implica uma ingênua tessitura do mundo e do outro que o desvela. Assim, Diadorim é também percebido por Riobaldo através desta ingênua visão que suporta em seu âmago tanto o surpreendente como o terrorífico. E é Diadorim que desvela o mundo para Riobaldo e, o sendo, é também concebido como maravilha e mistério, como esplendor e horror. Dado o mistério que envolve a pessoa de Diadorim - próprio de sua condição travestida - ele é, ao mesmo tempo, a não-resposta e a revelação para Riobaldo. Em outras palavras, é o elemento tensão que rompe com a ingenuidade e inocência do indiferenciado, ao suscitar-lhe a dúvida e ao colocar-lhe em angústias e indagações sem respostas:

Disse, me olhou. (...) Vi como é que olhos podem. Diadorim tinha uma luz. Reponho: entanto já estava noitinha, escurecendo; aquela escuridão queria mandar os outros embora. O que Diadorim reslumbrava, me lembro de hei-de de me lembrar, enquanto Deus dura. (Rosa, 1985, p.384).

Em relação à questão do feminino e do modo como Riobaldo percebe-o e relata, ele estará diretamente ligado à sua atitude passivo-contemplativa. Nesta como tudo é descoberta, desvelam-se o mundo da natureza, a cor e o cheiro das flores, os tipos e os cantos dos pássaros, o amanhecer e o anoitecer, enfim, a poesia com que todos estes fenômenos da natureza são percebidos, como algo essencialmente feminino em relação ao modo bruto e rasteiro do jagunço.

Esta é a primeira desconstrução de sentidos da categoria sexual como definidora de identidades que Guimarães Rosa nos impõe. No sertão é esperado que um jagunço não se afete  por estas percepções, a ponto de fazê-las poéticas. Através desta desconstrução surge o primeiro encanto e a primeira angústia-dúvida de Riobaldo em relação à Diadorim. Como  encanto, ele é percebido como doce, meigo, um convite ao amor e à paz, mas simultaneamente  - dado os sentimentos de vergonha e nojo de Riobaldo - ele é percebido como terrorífico e ameaçador, principalmente porque um jagunço não guarda este tipo de sentimento e amizade para com um outro.

Assim, pode-se dizer que um dos signos considerados como representantes do feminino é a poesia descritiva de uma realidade natural, que é acessível a todos, mas destacada e caracterizada com nuances de detalhes por um outro que não ocupa a posição de jagunço.

Vê-se que a percepção e descrição poética de uma realidade implica permissões e interdições de dado grupo social, bem como a posição ocupada pelo sujeito que fala. Entretanto, na polaridade estanque da cultura ocidental, as posições são confundidas com papéis únicos e modos de ser que determinam quem é e quem não pode ser o sujeito. Curiosamente, dentro desta concepção de papéis como identidades imutáveis, o feminino surge como aquele que possui o dom da poesia da terra. Será que esta não seria uma metáfora para dizer do feminino como indiferenciado ou o tão contraditório metaforizado pelos elementos naturais, já que guardam em si o mistério de gerar, criar e destruir?

Elaborando em outras palavras, Diadorim é símbolo do sertão interior de Riobaldo, ou seja, é a representação de sua luta com os mistérios, com o impenetrável, com o não saber do ser. Ele aparece para quebrar a indiferenciação de Riobaldo com o mundo da natureza e dos homens determinados pelo racionalismo positivista.

Frente à sua inocência que aceitou maravilhada o ser nas coisas, Diadorim surge como o enigma, a não-resposta. Talvez por isto, Henriqueta Lisboa apontou o caráter essencialmente simbólico dessa personagem. E cabe-lhe razão, pois ela age como angustiada interrogação em Riobaldo, que, a partir de então, caminha por uma fronteira quase indefinível, situada apenas entre o medo de ser o que quer ser e o apelo para ser o que deve ser. Diadorim, em sua indefinição homem-mulher, pureza-pecado, simboliza, imediatamente,  a oscilação de Riobaldo entre Deus e o Diabo. (Texto: Perfil de Riobaldo, Flávio Loureiro Chaves, Guimarães Rosa - Seleção de textos, organizado por Eduardo F. Coutinho, R.J., 1991)

Frente a estes parâmetros, Diadorim aparece como símbolo da luta travada por Riobaldo consigo mesmo, sendo esta não só uma luta entre valores éticos e morais, mas também entre categorias sexuais aprendidas como definidoras de sua identidade e, portanto, limitadoras de seus sentimentos e relações consigo, com o outro e com o mundo. Diante a estas colocações, pode ser possível dizer que Diadorim não é uma categoria sexual, mas um outro diversamente posicionado que altera e afeta uma linguagem dominante e obriga-a - através dos conflitos de Riobaldo - a instaurar-se sob outros significados.

Entretanto, a linguagem ordinária do cotidiano ou a linguagem do senso comum não comporta significados para indizíveis, ou seja, para o que não é permitido dizer-se e revelar-se em um dado contexto sócio-político, para o que não cabe nas aparências desse contexto.

Mediante esta limitação sócio-política e fenomenológica, o que é outro frente ao discurso hegemônico masculino acaba sendo definido como pertencente ao feminino.

Com Diadorim, Riobaldo aprende uma outra linguagem - que mediante a bipolaridade do mundo jagunço, somente pode ser associada com o ser feminino. Assim, a poesia dita e percebida por Diadorim no campo, nas flores, cores, pássaros, cantos, bem como em gestos de cuidados no tato para lavar as roupas, aparar os cabelos e organizar os instrumentos de uso na capanga, nada mais eram que uma linguagem proibida ao jagunço no que ele aprendeu e repetia automaticamente como ser homem. Em outras palavras, a poesia de Diadorim desconstrói e desloca a concepção do feminino como a negatividade do masculino, já que como representante da categoria masculina ele porta em si este símbolo da feminilidade como uma positividade admirada por Riobaldo.

Frente a tal exposição, pode-se dizer que o subalterno nada mais é que o sujeito oculto, emudecido pelos determinismos de um discurso hegemônico onde os significados são estabelecidos a priori - dado as conveniências sócio-cultural-econômicas - gerando os pré-conceitos que impossibilitam semelhanças e desvelamentos de sentidos renovados com o discurso do outro. Exemplificando: as dúvidas, vergonhas, nojos e temores de Riobaldo por seu amor a Diadorim são, na verdade, a revelação da impregnação de um discurso estéril - porque único - que limita o conhecimento e cria silêncios de interdições e de estigmas.

No caso de Riobaldo, dado sua indiferenciação, ocultamento ou mudez, não havia como ele perceber estas desconstruções. Subalterno ao discurso dominante, a ele restava a repetição passiva de lugares comuns sobre a identidade e sexualidade, tal como seu meio sociocultural e político definiam. Vendo em Diadorim - um homem jagunço - características, gestos e falas que retiravam a brutalidade opressora do mundo sertanejo, Riobaldo em sua posição não pode desconstruir sentidos. Foi este reducionismo que o levou a mistificar Diadorim como a musa inatingível e a definir a relação entre ambos através do olhar de categorias sexuais.

As categorias sexuais são representações de um discurso, o qual enuncia e anuncia as permissões, interdições e tabus nas formas de uso, apropriação e percepção dos seres e dos corpos. Em outras palavras, são as objetificações do corpo enquanto símbolo de um discurso e da pertencência a uma nação. É aqui utilizado o conceito de nação de Benedict Anderson:

As nações não se reduzem a territórios, povos e governo, mas são também “imaginadas”, isto é, elas articulam sentidos, criam narrativas exemplares e sistemas simbólicos que garantem a lealdade e o sacrifício de diversos indivíduos. (Citado no texto de Jean Franco - Sentido e sensualidade - Notas sobre a formação nacional, p.99).

A nação sertaneja com seu território árido e viril, seu povo oprimido pela parca condição econômica e seu governo baseado no coronelismo e na lei do mais forte, criou corpos femininos e masculinos que articulam os sentidos demarcadores dos espaços e papéis de cada um. Esses sentidos estruturavam os movimentos e as escrituras deste mundo e das pessoas que nele habitavam, bem como a leitura que era feita dos mesmos frente ao imaginário social sertanejo.

Na condição de subalterno, o jagunço era passivo, já que percebido como aquele que nada entende (a não ser da força bruta) e que precisa de um guia protetor que lhe traduza o mundo dos acontecimentos e ordene os movimentos e gestos do corpo. Este paternalismo para com o jagunço implicava uma nova concepção de estado: não mais o estado opressor, mas o estado benevolente para com aqueles que retribuíssem a generosidade através da fidelidade a seu chefe e a seus objetivos de fazer justiça com as próprias mãos.

Diante a esta nova nação imaginada, ao masculino eram reservados os papéis da luta, da bravura, da ousadia destemida, dos combates corpo-a-corpo, do desbravar espaços (travessia do Liso do Sussuarão), do ascetismo do corpo que depois era premiado com os carinhos de mãos femininas. Já ao feminino, eram reservados os papéis de acolher o guerreiro, satisfazê-lo em suas necessidades sexuais (como no caso de Nhorinha), ser uma imagem mítica de doçura e paz (como no caso de Otacília). A exceção de Diadorim, o feminino presente na narrativa de Grande Sertão Veredas (GVS), corresponde à escritura deste enquanto o outro do masculino; outro que deveria complementá-lo, satisfazê-lo em suas necessidades e fantasias, enfim ser a negatividade do masculino. Já Diadorim, aparece como o andrógino que, de certa forma, vem deslocar estes imaginários e estas narrativas construídas sobre as identidades do ser homem e do ser mulher.

Diadorim será o terceiro incluído na bipolaridade dos corpos, o qual tem a função de produzir outro fenômeno, outro viés de reflexão e de tessitura das identidades, já que porta em si tanto os comportamentos e gestos ditos masculinos como femininos. Sua androginia introduz no texto e no corpo de Riobaldo a dúvida: metáfora da diferença, mas não como negatividade, senão como alteridade. Entretanto, dado a condição misturada, ou melhor, os discursos plurais da alteridade onde coexistem textos tradicionais e novas posicionalidades de olhares, Diadorim é ora lido ao pé-da-letra, como o feminino negativo do masculino e ora lido como ser divino e misterioso que guardava segredos e que poetizava a realidade embrutecida do sertão.

Durante toda a narrativa de GSV, Riobaldo irá se angustiar, duvidar, perceber as diferenças e questioná-las, mas ainda ficará preso à escritura da nação imaginada sob o olhar sertanejo. Após assumir a chefia do bando e realizar o pacto com o Diabo - que nada mais é que o Outro dele mesmo - Riobaldo abandona a condição de subalterno, enquanto constantemente nomeado pelo exterior dominante, mas permanece na subalternidade do discurso masculino em relação ao feminino, do qual só sairá quando da morte de Diadorim, a qual surge como a revelação e reflexão sobre outros textos, sobre outras narrativas do que é o viver e o conviver

transformado em consciências de si como Outro.

E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: - mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube ... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d'arma, da coronha...

Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer - mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero. (Rosa, 1985, p.560)

O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.

(...) De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins - que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor... (Rosa, 1985, p.561)

No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.

Aqui a estória se acabou.

Aqui, a estória acabada.

Aqui a estória acaba. (Rosa, 1985, p.561)

Termina a estória e inicia-se a Narrativa: “reconstrução de um processo arqueológico do ser, restauração do ser que se encena nas malhas do texto pessoal e que revela as intertextualidades do texto nacional e da identidade que este constrói através de suas comunidades imaginadas. Entrelugar onde as posicionalidades do desvelamento podem ser reescritas, onde os silêncios encorpam vozes que anunciam outras verdades, outros dizeres, olhares e identificações que retiram subalternidades ao revelarem alteridades.”

 

Referências bibliográficas:

1. COUTINHO, Eduardo F. Guimarães Rosa - Seleção de Textos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

2. FRANCO, Jean. Sentido e Sensualidade: Notas sobre a Formação Nacional in Tendências e Impasses. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.99.

3. GALVÃO, Walnice Nogueira. As Formas do Falso. São Paulo: Perspectiva, 1972.

4. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

5. ROSA, J. Guimarães. Grande Sertão Veredas. 18° ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BREVE HISTÓRICO DO CURSO DE HISTÓRIA

Hoje, um dos grandes desafios brasileiros é ter uma educação de qualidade. Mas o que fazer para formar bons professores? Desde a aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996, vem sendo exigida a ampliação da carga horária das disciplinas pedagógicas (Didática, Psicologia da Educação e Sociologia da Educação) nos cursos de licenciatura. Entre os historiadores, o debate sobre o formato ideal dessas aulas não é tão recente assim. Já na década de 1930, um dos primeiros cursos de História do país, criado na Universidade do Distrito Federal (UDF), tentava equilibrar as atividades de ensino e pesquisa, e logo se tornou modelo para outros centros espalhados pelo Brasil.
Inaugurada no Rio de Janeiro em 4 de abril de 1935, por iniciativa do prefeito Pedro Ernesto (1931-1934 e 1935-1936) e do inspetor de Educação Anísio Teixeira (1900-1971), a universidade tinha uma proposta bem original: defendia a educação pública, laica e gratuita, e encorajava a pesquisa científica, literária e artística. De acordo com seus estatutos, o objetivo principal era “propagar as aquisições da ciência e das artes através do ensino regular de suas escolas e dos cursos populares”. Mais do que formar apenas professores de História, buscava preparar “quadros intelectuais” que fossem capazes de elaborar políticas públicas para o desenvolvimento cultural e educacional do país.
A graduação em História estava separada da Geografia, diferentemente do que acontecia na também recém-criada Universidade de São Paulo (USP) e ocorreria mais tarde na Universidade do Brasil. Por sua vez, as aulas ligadas à área pedagógica tinham destaque, o que tornava evidente a orientação de privilegiar a formação de professores. Mesmo assim, a pesquisa não era deixada de lado. Pelo contrário: era encarada como fundamental para os futuros historiadores. Entre os mestres recrutados pelo reitor Afrânio Peixoto (1876-1947) figuravam Gilberto Freyre, responsável pela cátedra de Antropologia; Afonso Arinos de Mello Franco, de História do Brasil; Jayme Coelho, de História da América; e Carlos Delgado de Carvalho, de História Contemporânea. Além do curso de História, a UDF tinha vários outros cursos voltados para a formação de professores, como Matemática, Física, História Natural, Ciências Sociais e Artes.
Ninguém precisava fazer concurso público para dar aulas ali. Mas devia cultivar uma boa amizade ou algum tipo de relação com outros mestres e educadores, especialmente aqueles da Associação Brasileira de Educação, entidade fundada em 1924, destinada a congregar educadores e intelectuais envolvidos com a renovação da educação no país e liderada por Anísio Teixeira. Quem vinha do Colégio Pedro II, como Delgado de Carvalho e Jayme Coelho, carregava um passaporte de prestígio que só facilitava o acesso ao grupo.
E o corpo docente da UDF ainda contava com uma missão francesa, que chegou ao país expressamente para ajudar na criação da nova universidade. O professor da Sorbonne Henri Hauser, que já havia indicado os nomes de Fernand Braudel e Pierre Mombeig para a USP, fundada naquela mesma época, ocupou a cadeira de História Moderna e também apontou as diretrizes para a formulação de todas as disciplinas. A equipe estrangeira reunia ainda Eugène Albertini, que ficou com os estudos de Antiguidade, e Pierre Deffontaines, professor de Geografia Humana, e vários outros professores de Filosofia, Literatura, Letras Clássicas, etc.
Mesmo com seu projeto inovador – ou talvez por isso mesmo –, a UDF enfrentou forte resistência da Igreja Católica e do Ministério da Educação. Desde o início, foi alvo de suspeição por defender o ensino público, gratuito e laico. Em pouco tempo, os professores e fundadores foram acusados de envolvimento com a Insurreição Comunista de novembro de 1935. Quase dois anos depois, o governo sancionou a Lei n? 452 estabelecendo a Universidade do Brasil, defendida pelo ministro Gustavo Capanema (1900-1985). Esse novo centro de ensino pretendia tornar-se um modelo para as futuras universidades. Com a instalação do Estado Novo, em novembro de 1937, criaram-se, afinal, as condições para a extinção da UDF, que, ainda assim, não foi imediata. Somente com a instalação da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) na Universidade do Brasil, em 1939, a UDF foi definitivamente extinta, e seus quadros integrados à nova instituição.
Daí em diante, os cursos superiores de História iniciaram uma nova trajetória. Na faculdade recém-criada, a ideia era educar “trabalhadores intelectuais para o exercício das altas atividades culturais de ordem desinteressada ou técnica e preparar candidatos ao magistério do ensino secundário e normal”. Para isso, dispunham de quatro seções fundamentais: Filosofia, Ciências (onde se incluíam os estudos históricos), Letras e Pedagogia. E ainda havia um departamento especial de Didática. Numa estrutura diferente da UDF, História e Geografia estavam integradas num único curso, mais voltado para a preparação de professores secundários. Agora, a pesquisa já não era tão importante.
Para levar adiante o novo projeto, novos professores foram incorporados. Na lista, destacavam-se os catedráticos Delgado de Carvalho, Eremildo Viana, Hélio Vianna, Hilgard Stemberg, Josué de Castro, Sílvio Júlio e Victor Leuzinger. No grupo dos assistentes ficavam Eulália Lobo, Marina São Paulo, Maria Yedda Linhares e Francisco Falcon. Uma nova missão veio da França trazendo os professores Victor Tapié, Antoine Bon e Francis Ruellan, que auxiliaram na formulação das disciplinas de História Moderna, História Antiga e Geografia. As relações fora dos muros acadêmicos continuaram favorecendo o preenchimento das vagas. Os candidatos envolvidos com setores católicos ligados ao Centro Dom Vital, a Alceu de Amoroso Lima (1893-1983) ou a velhos integralistas tinham preferência. Como nos tempos da UDF, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, importante centro de produção do conhecimento, e diversos autores renomados quase não participaram das seleções.
Mas os dois grupos universitários – os professores da antiga UDF e os que passaram a constituir o quadro da FNFi –  viam a disciplina de maneiras distintas. Na UDF, o foco estava numa história social da civilização – em oposição a uma política de exaltação dos grandes personagens. E seus professores pertenciam a uma primeira geração de profissionais empenhados em formar alunos comprometidos, ao mesmo tempo, com o ensino e a pesquisa. Já alguns mestres da FNFi  pareciam querer reforçar a construção de uma identidade brasileira por meio da unidade e da valorização dos heróis construtores da nação. A cátedra de História do Brasil, ocupada por Hélio Vianna entre 1939 e 1968, era o principal espaço para a difusão de uma história política meramente factual e de exaltação dos grandes feitos nacionais.
Os anos 1950 trouxeram outras perspectivas para o curso de História, inaugurando disciplinas e incorporando uma nova geração de professores, como Maria Yedda Linhares, Eulália Lobo e Francisco Falcon. No entanto, o curso de História da FNFi permaneceu com sua marca principal baseada essencialmente na formação de professores para o ensino básico, preparando alunos para o magistério, com poucas ligações com a produção do conhecimento histórico. Por muito tempo, esse formato daria o tom das graduações em História e da produção dos livros didáticos no Brasil. 
Em fins da década de 1960, ao mesmo tempo em que a Universidade do Brasil era transformada em Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), muitos historiadores começavam a reagir a esses modelos. Com a redemocratização do país a partir do final dos anos 1970, um amplo debate sobre educação voltou a mobilizar a sociedade. O ponto alto desse processo foi o projeto da LDB apresentado pelo senador Darcy Ribeiro (1922-1997). Além de distribuir a responsabilidade pelo ensino entre as três esferas governamentais (federal, estadual e municipal), o plano previa um mínimo de 300 horas para a disciplina Prática de Ensino nos cursos de formação docente. Em janeiro de 2002, o parecer do Conselho Nacional de Educação publicado no Diário Oficial aumentou a duração mínima para o estágio supervisionado da licenciatura, com a experiência em sala de aula alcançando 400 horas. Na área de História, alguns cursos incluíram as disciplinas pedagógicas em seus próprios currículos, sem delegá-las apenas aos Departamentos de Educação.
Nos dias atuais, conquistar uma universidade de excelência, especialmente no campo da História, também significa repensar as maneiras de articular o conhecimento dos conteúdos e as novas metodologias para a transmissão desse saber. Redescobrir percursos e itinerários de tantos profissionais pioneiros talvez seja um primeiro passo nessa caminhada.

Bibliografia
FÁVERO, Maria de Lourdes de A. Faculdade Nacional de Filosofia. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1989. (4 volumes)
FERREIRA, Marieta de Moraes “Notas sobre a institucionalização dos cursos universitários de História no Rio de Janeiro” In. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (org.). Estudos sobre a Escrita da História (7 Letras, 2006).
OLIVEIRA, Antonio José Barbosa de (org.). “A universidade e lugares de memória”. Rio de Janeiro: UFRJ, Fórum de Ciências e Cultura, Sistema de Bibliotecas e Informação, 2008.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; MATTOS, Hebe Maria e FRAGOSO, João. (orgs.). Escritos sobre História e Educação. Homenagem a Maria Yedda Linhares. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2001.
“Uma entrevista com Maria Yedda Linhares”. IN Revista Estudos Históricos, vol. 5, nº 10 (1992), pp. 216-236

sábado, 1 de fevereiro de 2014

A QUESTÃO INDÍGENA - CONFLITOS E SUSTENTABILIDADE

O grau de urbanização de Rondônia é um dos menores da região amazônica, mas com a maior densidade demográfica, ou seja, uma boa parte da população rondoniense ainda está na área rural e representa baixo índice de pobreza extrema, fenômeno mais presente entre ribeirinhos e na periferia das cidades.
As ocupações e os assentamentos na Amazônia, principalmente em Rondônia, são prova dos equívocos da estrutura agrária e dos modelos econômicos que subsistem no Brasil há séculos, que não permitem a convivência entre agronegócio, produção familiar e sustentabilidade. Esse sistema está gerando, só em Rondônia, 92 focos de conflitos, com 2.920 famílias envolvidas, segundo números atualizados da Comissão Pastoral da Terra.

modelo de agricultura familiar às margens do rio Mamoré
Foto Wilson Dias/ABR

O modelo de colonização – “amansamento” – das novas fronteiras onde floresta, índios e povos tradicionais eram as únicas ameaças à “segurança do colonizador” foi, sem dúvida, um grande achado. Semelhante ao ocorrido no Paraná dos anos 1930 a 1970, aliviou as pressões por terras nos grandes centros (Sul, Sudeste e Nordeste).
O capitalismo agrário chegou para ficar. Ao Estado militar coube “resolver os conflitos” sem reforma agrária, com grande incentivo à implantação de agropecuária e serrarias na Amazônia por meio da Sudam e com os Projetos Integrados de Colonização (PICs) administrados pelo Incra. É importante lembrar que não temos histórico de conflito por terra nesses projetos, pois havia ali estrutura mínima de estradas e créditos para realizar o corte raso da floresta. Tais incentivos não existiram para capixabas, nordestinos e sulistas, que trabalhavam em suas pequenas propriedades apenas para o sustento familiar. Meeiro, peonatos, mulheres e crianças que compunham a força de trabalho no campo (os escravos brancos) representavam também um elemento a mais na pressão das lutas dos pequenos proprietários para ficar na terra e por um pedaço de terra para eles próprios.
Há ainda as famílias que, por alguma “sorte”, saíram do peonato no campo para se transformar em operários das madeireiras, nas mesmas condições de explorados. Com a escassez de madeira no Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, aumentam nas pequenas cidades o desemprego, a tensão social e a criminalidade. Esses são motivos a mais para buscar matéria-prima nas novas fronteiras e gerar emprego e renda, fenômeno que ocorre até os dias de hoje, em todos os estados do Norte, pela manutenção do modelo secular de exploração dessa matéria-prima no país: predatória, concentradora de renda, com vastas fronteiras a “desbravar”. As serrarias servem como ponta de lança para avançar nas terras devolutas, indígenas, da União, áreas de conservação, reservas e parques.
Na década de 1970, as atividades econômicas no campo e nas cidades foram impulsionadas pelo “milagre”, e uma fronteira reconhecidamente rica, disputada há séculos, teria de ser aberta à exploração econômica. Os governos militares criaram os grandes projetos para a Amazônia, com enfoque em três vieses: o econômico, o “social” (promover a paz no campo) e a segurança nacional. Guerra fria em alta, o perigo iminente com Allende no Chile, Che Guevara rondando pela Bolívia, Peru instável politicamente, Golbery do Couto e Silva vaticinava a nova geopolítica. Instrumento para a abertura das veias para o avanço e a expansão capitalista, o modelo visava à ocupação dos “vazios demográficos” nas regiões de fronteira entre nações soberanas e as nações indígenas, vide Raposa Serra do Sol, representavam um estorvo para os interesses econômicos onde minérios, madeira e pedras preciosas foram explorada sem deixar recompensa alguma para Rondônia. As terras das seringueiras, castanheiras, essências e óleos, deram lugar ao pé de café e pastagem para criar gado.
Primeira ocupação
Os “estrangeiros” chegaram aos milhares nas terras (hoje) rondonienses na segunda metade do século 18 para edificar o Real Forte Príncipe da Beira, iniciado em 1776, fruto da política “pombalina”, no Rio Guaporé, fronteira com a Bolívia. Centenas de escravos, presos e militares povoaram o rio em toda a sua extensão navegável, de Guajará-Mirim (RO) a Vila Bela da Santíssima Trindade (MT). “Misturados” aos índios, adensaram a população ribeirinha. Tornaram-se os povos tradicionais de hoje (caboclos ribeirinhos), que ainda sofrem com os efeitos da colonização e o modelo de produção fortemente introduzido no sul de Rondônia e oeste de Mato Grosso. Muitas áreas indígenas foram invadidas por fazendas, madeireiros e usina hidrelétrica. Sete localidades tradicionais e quilombolas estão em conflito com os “invasores”. Não assimilaram a invasão cultural que já se reflete na centenária manifestação cultural dos povos tradicionais brasileiros e bolivianos, que é a festa do Divino Espírito Santo no Guaporé. Pouco ou quase nada foi feito em termos de políticas afirmativas para estancar os efeitos perversos da colonização. Os conflitos culturais e de terras se multiplicam ao longo do rio.
Outra leva de “estrangeiros” aportou na segunda metade do século 19 e início do século 20, fruto do tratado de Ayacucho (tratado de amizade Brasil-Bolívia), quando a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré foi acertada entre os dois países. A partir de 1905, milhares de operários de diversas nacionalidades afluíram a Santo Antônio, hoje Porto Velho, para trabalhar na ferrovia, muitos até a morte, vítimas de malária, tifo, febre amarela, picadas de cobras, acidentes. Os primeiros operários da história de Rondônia protagonizam também os primeiros conflitos sangrentos entre índios e brancos, amarelos e negros, trabalhadores e seguranças do empreendimento capitalista E.F.M.M. Railway Co., em Rondônia, para a construção da ferrovia. Em seguida, os seringalistas completaram o trabalho de dizimação de nações indígenas no primeiro e no segundo ciclo da borracha, do início do século 20 até a Segunda Guerra Mundial.
Seringueiros x índios
O látex espalhou seringueiros nordestinos, principalmente cearenses, nas margens dos rios de Rondônia, desde o Cabixi, afluente do Mamoré que faz divisa de Rondônia com Mato Grosso e Bolívia, principais “estradas” para Guajará-Mirim. O Rio Machado, que faz divisa de Rondônia com Mato Grosso e Amazonas, os “fundos” de Rondônia à época, hoje faz parte do hall de entrada para o estado. Rios coletores da borracha para Calama, Porto Velho e Humaitá no Amazonas, além do Vale do Rio Jamari. Para ilustrar o desastre que representou para as nações indígenas o contato com seringueiros e seringalistas, citamos dois povos extintos: os Ariken e Jarus. Em cinco anos de aproximação e contato com a Comissão Rondon, que implantou o serviço telegráfico Cuiabá-Porto Velho, e em seguida com o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), de 1909 a 1914, pereceram 90% dos Ariken. Mulheres e crianças foram roubadas para servir de escravas, prostitutas e esposas de seringueiros. Hoje, resta apenas a Cidade de Ariquemes às margens do Rio Jamari, “homenageando” essa nação de gente dócil, afeita às amizades, que por isso mesmo não resistiu ao primeiro ciclo da borracha.
Os conflitos entre índios e seringueiros, garimpeiros, mineradoras, madeireiros e grileiros acontecem até hoje nessa grande região que compõe o arco da exploração predatória da BR-421. Onze homicídios sem esclarecimento de 2001 a 2009, dezoito áreas de conflitos e nenhuma vontade política de resolvê-los.
Ainda existem dezessete nações indígenas em Rondônia, segundo a Funai, além das fusões de troncos étnicos de várias tribos que ocupavam áreas distintas ou nômades, resistindo a muita pressão em Rondônia. A tensão é constante em todos os segmentos da economia em operação no campo. A população indígena vem crescendo, mas o ceticismo da Funai e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) é grande quanto ao fim dos conflitos. Ambas as instituições acreditam na existência de índios não contatados em pelo menos duas regiões, sul e no norte do estado – inclusive na região da Hidrelétrica de Jirau, em construção.
Distribuição das terras
As grandes propriedades rurais do estado estão concentradas basicamente em Porto Velho, Machadinho, Guajará-Mirim e na grande região de Buritis. Só no município de Porto Velho, por exemplo, 38 imóveis com 1,3 milhão de hectares estão nas mãos de 29 pessoas devidamente cadastradas e codificadas no Incra-RO. Rondônia têm 91 imóveis que medem de dez a quatrocentas mil hectares juntas concentram  2.579.437,1. Não foi  sem motivo. Seringa, castanha, cassiterita, ouro e outros minerais, terras devolutas, acesso fácil fizeram da região, no início do século 20, o paraíso dos seringalistas. Ainda hoje há 300 mil hectares de seringais registrados em Rondônia. O Incra ainda luta para retomar 9,6 milhões de hectares de terras públicas ocupadas, invadidas, fraudadas no estado. Outra correção necessária é a definição de propriedade dos Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATPs), aberração praticada pelo Incra de 1978 a 1982 que distribuiu 535 CATPs com 2 mil hectares cada um, “pequenos mimos” dos militares para aliados e simpatizantes. No total, 1,070 milhão de hectares, concentrados no centro-sul do estado, hoje foco de conflitos.
Rondônia tem 193 projetos de assentamentos do Incra com quase 6 milhões de hectares para 63.994 famílias assentadas e apenas 1.716 propriedades tituladas. Aí está a dificuldade para contratar financiamentos. Das propriedades rurais, 93% têm até 200 hectares, 37% da área agricultável. Os 7% restantes ocupam 63% dessas terras, verdadeiros oligopólios. Vamos dar como exemplo duas famílias: Y. B. Sabba, com sete espólios em Porto Velho e Guajará-Mirim, é dono de 368.012 hectares; e Otavio Reis, em Bom Futuro, de 255.246 hectares. Não haverá paz com tamanha desigualdade. Terras com produtividade duvidosa, e o Incra sem condições de dar celeridade aos processos de retomada e definição de propriedade. São apenas três os procuradores no Incra para cuidar de aproximadamente 19 milhões de hectares, 270 ações peticionadas, um único “proprietário”, que geralmente é político, magistrado ou testa de ferro, que contrata quatro ou cinco advogados para defender as terras que originariamente pertencem à União. Nessas condições, em um século – para os otimistas – teremos Rondônia pacificado, os acampados devidamente assentados, todas as terras indígenas demarcadas, parques e reservas respeitados, enfim, o Eldorado. Há forte questionamento de líderes camponeses e juristas quanto ao ordenamento jurídico e a aplicabilidade dos artigos 184 a 191 da Constituição, principalmente o artigo 187.
Modelo econômico no novo “Eldorado”
As serrarias e a agricultura familiar aquecem a economia nas primeiras décadas de ocupação. Vilas e distritos se expandem. Mas a terra fica exaurida no máximo em cinco anos sem o uso de tecnologias, rotatividade, assistência e planejamento. Os pequenos produtores plantam o capim em busca da “rentabilidade” do leite e da carne bovina. Novas derrubadas avançam até onde são ou não permitidas pela legislação, a “fiscalização” aperta e invariavelmente sofrem pressão e até extorsão. A burocracia e o custo de uma licença para manejos são impraticáveis para os pequenos proprietários. Estes vendem suas propriedades (muitas delas frutos de assentamentos do Incra), arriscam-se em busca de novas fronteiras, adquirem áreas maiores em regiões de conflito.
Essa é a forma que se dão as reconcentrações das terras, que se transformam em fazendas de gado. Grandes plantações. Já o agricultor familiar nas suas novas áreas substitui a roça pela vaca leiteira, não cria mais animais de pequeno porte nem aves. A monocultura avança. Encolhem-se as cidades pequenas do entorno, o comércio varejista de bens não voltado para insumos da pecuária fecha. Esse é um modelo que anda em círculo e mantém nossos índices de produtividade de alimentos lá na década de 1970.
Os quadros abaixo ilustram a perversidade do modelo capitalista agrário para Rondônia e seu agricultor familiar. Cabe debater a durabilidade desse modelo, já que a reforma agrária e a sustentabilidade não estão na agenda dos entes federativos como prioridade.



O FEMINISMO FILOSÓFICO - OU A FILOSOFIA DO ESQUECIMENTO

Falar em história das mulheres é algo um tanto novo no meio acadêmico brasileiro, mas a questão, aos poucos, vem tomando corpo e invadindo espaços variados de investigação. Maior novidade ainda é falar nos temas "mulheres", "gênero" e "feminino" como conceitos, o que remete ao campo próprio da filosofia. O significado desses termos tem plena atualidade filosófica e crítica. Em primeiro lugar, as mulheres são um tema ou mesmo um tópos de uma história da filosofia escrita por homens. É raro encontrar um filósofo que não tenha se ocupado da questão sempre tratada na intenção da delimitação do lugar do humano em sua relação com as mulheres. Enquanto tema, e em segundo lugar, elas são um assunto que entrelaça motivos políticos, estéticos e metafísicos. É nesse território que aparece o conceito do feminino. Os filósofos homens tentaram construir uma geografia onde situar o feminino que, como símbolo, é o locus específico eleito para as mulheres, para definir sua natureza e ditar-lhes uma lei, uma inscrição no universo previamente tecido da tradição. Gênero é o termo usado há algumas décadas para falar dessa produção de identidade segundo a cultura, a sociedade e os mecanismo de poder nela envolvidos. Gênero, portanto, para o feminismo, é um conceito crítico. Do mesmo modo, os outros dois conceitos devem ser vistos de modo crítico, considerando o aspecto retórico, a função e o uso que tentam fazer valer a verdade histórica contida na palavra.
O feminismo filosófico surge diante dessas questões. Um de seus aspectos fundamentais - que poderá qualificar o feminismo em filosofia em relação aos movimentos feministas de teor eminentemente prático - é a questão da relação entre teoria e prática, do conhecimento e da ação, que fundam o sentido do que chamamos, ainda hoje, de filosofia. O feminismo ajuda a questionar o discurso filosófico em seus pressupostos fundamentais e mesmo arcaicos, tendo a filosofia como uma teoria da ação. É preciso ter em vista que a atualidade das questões políticas que envolvem as mulheres em tantos setores da atividade humana (problema sério em países inteiros) não pode ser compreendida sem atenção aos aspectos de fundo, ao espaço da fundamentação metafísica/ética/estética, que pode orientar para a recuperação da vocação prática da filosofia. A questão feminina é atual e dispõe-se na urgência da produção da solidariedade com o passado, o presente e o futuro da humanidade. As mulheres compõem a história violentada sob o decreto da exclusão da mulher; do mesmo modo, a história da filosofia que, como qualificação do pensamento e da razão, determina os conceitos fundamentais que estão na base da estrutura da sociedade, participa dessa violência. O feminismo filosófico, lembremos, em sua exposição especial com Mary Wollstonecraft, no século XVIII, era a defesa do bom senso da humanidade. Portanto, uma causa voltada para a construção de uma sociedade para todos, não apenas de homens, nem apenas de mulheres. O feminismo filosófico vem levantar essa questão que é ainda atual e que diz respeito à fundação de uma sociedade justa em que a violência e a dominação sejam expostas em seus elementos constitutivos.
A definição filosófica do feminismo, todavia, é tão complexa quanto a história da filosofia. É preciso uma definição apropriada do que se entende por essa história para que o conceito do feminismo e os movimentos que ele permite possam ter validade filosófica. Enquanto história, a filosofia constitui-se como tradição e cânone do qual as mulheres não participaram de modo relevante. O feminismo filosófico é a teoria que procura investigar a fundamentação dessa falta. É um modo de teorização que surge com a já citada Wollstonecraft, em seus Escritos Políticos, nos quais critica o sexismo dos filósofos homens (de Rousseau ao seu contemporâneo Burke), e que evolui até o século XX, com filósofas como Simone de Beauvoir em seu O Segundo Sexo, alertando para os direitos das mulheres na base de uma reivindicação a ser e a pensar, à vida pública e ao universo do discurso e do poder. De meados do século XX até hoje, o feminismo cresce como filosofia que tenta rever o posicionamento da mulher diante da estrutura social e da produção do conhecimento. Se as mulheres constróem um lugar de filósofas no século XX, é porque participaram de uma revolução real que altera as micro e macro estruturas da sociedade ao confirmarem sua presença. Esse é o avanço do feminismo para a filosofia: produzir a entrada das mulheres na cena ontológica - o poder ser - que redunda na cada vez mais crescente cena política e pública consituindo as mulheres como cidadãs, ou seja, seres que participam da constituição política como participantes - que não seja uma mera tautologia dizer - da "pólis".
A ausência histórica das mulheres da filosofia pode ser explicada de muitos modos. O primeiro motivo a ser levantado é, portanto, o silêncio feminino facilmente observável na um tanto escassa produção de livros e textos. As mulheres filósofas são poucas e de produção quase rara relativamente aos homens. É claro que falo aqui em termos quantitativos. Não é possível dizer que as mulheres escreveram muito para acobertar uma acusação de inferioridade intelectual - argumento que, mesmo comum, não encontraria sustentação -, nem é possível dizer, entretanto, que não escrevessem ou participassem da fundação da tradição da filosofia. É preciso enfrentar a questão do silenciamento. Apenas a desmontagem desse processo histórico, por meio de uma genealogia que procura verificar seus elementos originários sempre presentes e renascentes na atualidade, permitirá compreender, pela via negativa, a verdade oculta na produção do silêncio imposto. As mulheres, é certo, participaram da filosofia, mas pela porta dos fundos, assim como de todos os setores da vida produtiva e ativa das sociedades. A improdutividade das mulheres - que não se esqueça - não pode ser avaliada sem a procura por aspectos que tocam na fundamentação dos movimentos da história. A alegação de que as mulheres tenham sido, ao longo do tempo, seres do silêncio por sua própria natureza ou que, na divisão do trabalho, tenham ficado com as tarefas do corpo, da procriação, da casa, da agricultura, da domesticação dos animais, por questões sempre naturais, perde sua validade. A produção do ideal da "natureza feminina", assim como de uma "natureza do homem" ou mesmo uma "natureza humana" serve à delimitação do humano segundo a utilidade necessária à constituição e ao interesse do poder e seus guardiões. Os filósofos sempre tocaram com essa questão na produção do humano por meio de sua definição. As mulheres sempre representaram mais do que a cultura excluída da cultura, ou da cena dos meios de produção e do conhecimento: as mulheres representam a humanidade excluída da humanidade.
O segundo motivo da ausência é, pois, a construção de um ideal feminino que mascara o recalque do corpo, da natureza, da vida nua - na expressão de Walter Benjamin - da qual coube às mulheres serem os estranhos porta-vozes: toda fala das mulheres, a partir desse pressuposto, precisa ser compreendida sob o signo do silêncio que a revela. Se o silêncio apareceu na história como um atributo feminino, que constituía parte do suposto mistério constitutivo da mulher - e mesmo do feminino enquanto ideal - é preciso rever seu lugar e pensar a construção do lugar do silêncio no qual as mulheres foram trancadas, assim como o foram em casas, escolas, conventos e manicômios para histéricas. O silenciamento das mulheres ocorreu em momentos específicos da história e concomitante a um processo que teve vítimas em setores variados. O silenciamento teve seu modo pérfido, quando mulheres foram levadas à fogueira, e teve seu modo cínico: as mulheres foram transformadas no "belo sexo" produzido pela cultura com o apoio da filosofia e das artes. A produção do ideal do belo sexo, a propósito, é uma marca da modernidade: sua função sempre foi a de afastar as mulheres do conhecimento e da política, mais do que protegê-las da imagem do mal com que foram desenhadas.