domingo, 6 de janeiro de 2002

O Movimento Tenentista: a Intervenção Política dos Oficiais Jovens (1922-1935) - de José Augusto Drummond, RESENHA

O livro de José Augusto Drummond tem entre outros méritos o de não ser ambíguo ao dar conta do movimento tenentista. Com efeito, a tese clássica de Virgínio Santa Rosa segundo a qual os tenentes encarnavam os anseios mais íntimos das classes médias e constituíram sua primeira expressão política foi substituída na historiografia e sociologia brasileiras por argumentos frouxos e explicações ad hoc que de má vontade admite atenuar a ênfase na.dimensão de classe e permitir algum espaço a fatores especificamente militares, isto é, institucionais. O resultado tem sido análises pouco convincentes e claudicantes da perna teórica: sim, os tenentes traziam um forte componente de classe, mas não se deve ignorar o processo de socialização nos valores militares; é claro que representavam os interesses das classes médias, entretanto o Exército é uma instituição que goza de autonomia em relação à sociedade; como membros da instituição militar, os tenentes pertenciam a uma categoria que não é diretamente determinada por critérios de classe, todavia, etc., etc., etc. Nem se veja em tais argumentos instâncias de sofisticação teórica ou de percepção mais aguda de nuances de análise; trata-se simplesmente de carência de um modelo analítico sólido no qual o peso relativo dos dois fatores — o de classe e o institucional — esteja adequadamente determinado bem como o modo de sua operação. Há também uma outra dificuldade: os historiadores e sociólogos brasileiros nunca souberam muito bem o que fazer com a variável militar; em última análise remetem-na para o âmbito do Estado diluindo-a em outras variáveis de tratamento cômodo, até porque a dicotomia Estado/Qualquer Outra Coisa tem sido usada para tudo explicar nos últimos vinte e poucos anos.
José Augusto Drummond opta claramente pela análise institucional; isto é, ele remete o tenentismo de volta ao seu contexto natural, o Exército, e aí procura determinar o seu lugar. Desta opção decorrem o pressuposto da análise e sua hipótese de trabalho: a) "Quando digo que os tenentes atuam como militares e que o tenentismo foi uma forma de militarismo, parto da seguinte suposição: o Exército Brasileiro — como instituição burocrática permanente — é dotado de autonomia (organizativa, burocrática, ideológica, de recursos humanos) em relação aos demais grupos sociais e às demais organizações governamentais" (ps. 22-23); b) "sustentarei que os tenentes quiseram principalmente lutar pelos interesses do Exército Brasileiro, conforme os entenderam, atribuindo-lhe um papel especial de arbitragem sobre o sistema político nacional" (p. 31). Em síntese, os tenentes atuaram em função de valores da instituição militar simplesmente porque eram militares, e não um bando de pequenos comerciantes, funcionários públicos, advogados, engenheiros, etc.; e os militares têm interesses peculiares que não se confundem com os de qualquer outra categoria social.
Mas aqui começam os problemas com a análise de José Augusto Drummond. Em primeiro lugar ele supõe que a auto-suficiência de meios do Exército Brasileiro (toda organização militar moderna tem suas próprias escolas, critérios peculiares de recrutamento, quadros superiores próprios, etc) equivale, no plano do comportamento institucional, a autonomia de ação na esfera política. Ao invés de toma-la como um dado da análise, José Augusto Drummond deveria ter mostrado que tal equivalência realmente existia, digamos, em 1922. Ademais, o Autor negligencia o fato de que tal autonomia não é jamais um atributo, mas uma variável; isto é, não basta dizer ou supor que o Exército gozava de autonomia, pois a questão é: quanta autonomia? O suficiente para fazer da instituição militar um ator com projeto próprio ou para negociar sem maiores injunções com os demais agentes políticos?
Em segundo lugar, José Augusto Drummond dá crédito excessivo ao organograma organizacional e o confunde com o comportamento efetivo da instituição militar. É verdade que o Exército era uma organização burocrática, mas não há porque exagerar na avaliação do grau em que as variáveis estruturais funcionavam eficientemente; a imagem que o Autor nos oferece do Exército (ps. 29-30) é a de uma burocracia do "tipo ideal" na qual a instituição está consolidada no aparelho governamental, a hierarquia, é rígida e resulta em coesão interna, os quadros superiores (oficiais) são profissionalizados, as funções institucionais dentro do aparelho do Estado são específicas, o ambiente é de convivência profissional intensa, etc. De qual Exército está falando José Augusto Drummond? Não certamente do Exército Brasileiro do início do século XX, como quer nos fazer crer o Autor. Aliás, a leitura mesmo superficial da parte propriamente analítica do livro desconfirma seus pressupostos teóricos: o que surge das páginas escritas por José Augusto Drummond está longe de ser uma instituição disciplinada, rigidamente hierarquizada ou coesa, com funções específicas no plano do comportamento real ou dotada de clima de intensa convivência profissional. E por que defini o Exército como instituição burocrática permanente se os próprios militares, os de ontem e os de hoje, não estão seguros disto, a ponto de inscrever o "permanente" na Constituição vigente como a buscar abrigo na letra da lei?
Desejando estudar o Exército como organização (o que está correto) José Augusto Drummond enfatiza excessivamente as dimensões internas, estruturais da instituição militar e, por isso, escorrega numa análise muito formal. Fico sem saber o que têm a estrutura burocrática do Exército a ver com o tenentismo, e o Autor não tem muito sucesso em auxiliar-me sobre este ponto. Também é muito formal e demasiadamente resumido o tratamento que José Augusto Drummond dá à percepção que os tenentes supostamente tinham do papel do Exército no processo político. Em linhas gerais, o esquema apresentado é o seguinte (p. 86): a) O poder civil é corrupto e não se identifica com os interesses da Nação; b) inversamente, o Exército Brasileiro representa legitimamente as aspirações nacionais; c) o Exército está em oposição ao poder civil e cabe-lhe assumir uma posição de "arbitragem" que leve à "regeneração" política do país e garanta sua própria sobrevivência e autonomia como instituição. Mas o que tem este esquema de peculiar ao tenentismo?. Eu diria que muito pouco, ou nada; com alguns acréscimos e alterações menores este mesmo esquema forma a estrutura básica do pensamento de Góes Monteiro que, por sinal, em nada se identificava cote os tenentes (além de tê-los combatido com denodo).
Em síntese: José Augusto Drummond optou pela perspectiva analítica correta, mas não soube desenvolvê-la; ficou nos enunciados genéricos de um modelo que a teoria organizacional contemporânea há muito declarou inadequado e demasiado formal. Como conseqüência, as evidências que o Autor apresenta como "demonstração" de sua hipótese articulam-se de maneira muito frágil com o pressuposto analítico: os tenentes procuraram preferencialmente ganhar aliados dentro do Exército e encontrar uma liderança dentro do quadro de oficiais (ps. 102-103), deflagraram uma revolta concebida operacionalmente em termos militares (ps. 105; 115), etc. Estes podem até ser indicadores do caráter militar do movimento tenentista; mas por não estarem articulados com qualquer concepção do Exército como instituição (e não apenas do Exército como organização) soam como fragmentos de um tipo de "explicação por exemplificação” sempre tênues e algo ingênuos.
O livro de José Augusto Drummond é, entretanto, muito interessante no aspecto estritamente informativo, e o capítulo sobre a Coluna Prestes é, sem favor, muito bom. O Autor é um pesquisador competente e fez um bom trabalho de levantamento de fontes. Neste aspecto o leitor achará o livro muito satisfatório.
O Movimento Tenentista: a Intervenção Política dos Oficiais Jovens (1922-1935)
Autor: José Augusto Drummond, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1986